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Cinema

'Ataque dos Cães' vê o lado gay do caubói machão, mas não só isso

Faroeste de Jane Campion acompanha personagens solitários que habitam universos próprios

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Ataque dos Cães

  • Onde Disponível na Netflix
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Benedict Cumberbatch, Kirsten Dunst, Jesse Plemons
  • Produção Reino Unido/Canadá, 2021
  • Direção Jane Campion

Podemos dizer, para simplificar, que a palavra gay se tornou, nos últimos tempos mais um ponto de venda do que outra coisa. "Faroeste gay" –eis como se apresenta "Ataque dos Cães". É menos inexato, em todo caso, do que a tradução escolhida para "The Power of the Dog", mas passemos.

Estamos no estado americano de Montana, em 1925. O faroeste, a rigor, já acabou. Mas os rancheiros e caubóis continuam a toda nesse oeste distante. Ali estão os irmãos Phil e George Burbank. Ali também está a viúva Rose Gorden e seu filho Peter, que servem o almoço para os peões e seus patrões, os Burbank.

O primeiro a chamar a atenção é Peter, cujos modos delicados despertam a ira dos machões da mesa, comandados por Phil. Peter se defende como pode, os ignora. Seu objetivo é ir para a faculdade e se tornar cirurgião.

George, o mais civilizado dos Burbank, se aproxima da viúva, com quem se casará pouco depois. Phil não aprecia a ideia. Odeia o menino, se notabiliza pela misoginia e vive imerso na lembrança de seu mestre já morto, Bronco Henry, o homem que ensinou a ele como montar a cavalo.

Desde então começamos a perceber o quanto será difícil dizer que esse conjunto de personagens forma de fato um conjunto. É como se cada um vivesse em um universo próprio. George com suas viagens de negócios e proximidade com o governo; Phil, com o fantasma de Bronco Henry, o mestre de sua vida; Rose se sentindo deslocada —quando não hostilizada— todo o tempo; Peter dissecando animais em seu quarto. Aproveita as férias no campo para praticar, se preparando para futuras cirurgias.

São todos solitários, unidos só pela beleza da paisagem, que Jane Campion explora com delicadeza. A mesma com que trata seus personagens, por sinal. Como o casal Rose-George –para Rose, o marido encomenda um piano de meia cauda. Gesto amoroso, talvez, mas deslocado. Ela é uma pianista sem prática, que acompanhava uma orquestra no fosso de um cinema —estamos na era do filme mudo. Será chamada a tocar para o governador.

Que importa? Cada um está em seu mundo. Inclusive Peter, que com seu físico franzino passa altivamente pelos caubóis que adoram o insultar. Com o tempo, Phil parece abandonar a hostilidade e se dispõe a uma aproximação com o jovem Peter. Quer ensinar a ele a arte da montaria e tal, tudo como seu velho mestre Bronco Henry fez com ele.

A insinuação de homossexualidade do caubói machão é evidente —mas está longe de ser o essencial do filme. A insinuação em relação ao jovem Peter é bem mais estranha, pois de início ele parece francamente afeminado, característica que vai perdendo com o tempo.

E mesmo a aproximação com Phil —e dadas as consequências de tal proximidade— pode se associar menos a uma ligação de natureza sexual entre os dois do que a uma pérfida vingança contra o homem que maltratou a ele e à sua mãe.

Esse último item decorre de algumas associações que envolvem de dissecação de animais a conhecimentos médicos e a existência de revista de cultura física, sobre as quais não convém se deter aqui. De todo modo, isso não impede que esse "Ataque dos Cães" seja visto como um filme com aspectos claramente gays, é certo.

Ao mesmo tempo, é de se levar em consideração que nos últimos tempos tem sido bastante exposta a tendência a relações gays em locais enclausurados —prisões, quartéis, claustros et cetera—, tanto quanto no campo aberto, onde a ausência feminina é prolongada.

Jane Campion é enfática a esse respeito —a notar o banho no rio dos caubóis machões, cuja macheza parece desaparecer com a nudez—, mas ao mesmo tempo não esquece as virtudes da discrição e da elegância. Nem perde de vista por isso o conjunto de seu filme. Sim, existem gays, no filme e fora dele, devem ganhar o direito à visibilidade e à representação. Mas é como se Campion nos lembrasse que sua existência não se limita à orientação sexual e que nem é só disso que o mundo é feito.

Por fim, os últimos anos têm sido pródigos em faroestes surpreendentemente inovadores. "Ataque dos Cães" é bem interessante, embora bem menos instigante do que filmes como "Vingança e Castigo" — do setor popular— ou "O Atalho" e "First Cow" —na vanguarda.

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