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Moda

Mugler fundou carão e fetiche sadomasoquista contra frigidez da moda

Nome fundamental para entender o universo da alta costura, estilista ainda produziu perfumes e trabalhou com Beyoncé

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Alguns estilistas são conhecidos por criar um modelo de roupa famoso, outros por botar em evidência um arquétipo de beleza perpetuado num espaço de tempo definido. São raríssimos aqueles, porém, cujo legado não se resume à tesoura, mas fundam um estilo que vira e mexe volta à baila como última moda. Thierry Mugler era um deles.

Ou melhor, Manfred. Era como gostava de ser chamado, ao menos nos últimos dez anos, esse estilista francês, morto aos 73 anos no domingo. Embora recluso, o designer não escapou dos holofotes entre o final dos anos 1970 e estertores dos 1990, fissurados pela estética fetichista costurada por ele.

Estilista francês Thierry Mugler durante a exposição 'Couturissime' no Museu das Belas Artes de Montréal - Martin Ouellet-Diotte/AFP

Se os decotes profundos são o cerne da nova silhueta feminina, é porque Mugler os fez descer até o limite pélvico nos anos 1980. Se a calça de couro embalada a vácuo no corpo virou imagem de sensualidade, é porque, há pouco mais de quatro décadas, ele resolveu envernizar e incluir elástico na peça. E, talvez sua ideia mais controversa, se as mulheres não têm asas, então que usem ombros apontados para o céu.

O legado de Mugler não é só a forma, mas a imagem e o entorno fundado por ele para combater a frigidez instalada numa moda recatada demais ou florida demais, enlatada pela costura francesa a partir dos movimentos da contracultura.

Deu nome aos bois e chamou sua estética de "glamazon", uma expressão ainda recorrente no vocabulário da moda que mistura o glamour e o ideal de amazona. Na prática, fundia a roupa de festa clássica a tudo o que tornava a mulher uma espécie de guerreira moderna, hiperssexualizada e consciente de seu poder sobre-humano. Surgia, assim, o chamado "power dressing", à época costurado também por colegas e rivais como Jean Paul Gaultier e Claude Montana.

A silhueta triangular, a fusão de texturas em bases pretas e o vinil estão intrincados ao repertório desse pai do fetiche, que, mais do que nunca, aparece diluído em passarelas como as da Balmain, Saint Laurent e Celine, para citar apenas as grifes francesas.

Nessa orgia de referências ao sexo, cabiam ainda metalizados –os tecidos dourados viraram tendência absoluta a partir de suas coleções em meados dos 1980– e estampas animalescas. Mugler tocou em tudo o que supostamente levantaria a autoestima feminina, seja por meio da engenharia do corpo até o rosto marcado pela ferocidade.

Sim, o carão, aqueles traços sisudos e angulosos que enchem as revistas de moda, foi criação dele. Uma de suas modelos mais recorrentes, a americana Jerry Hall resumiu a mulher "muglerizada" como aquela que "tem tudo, sensualidade, suavidade, voluptuosidade e desdém".

Apaixonado pela beleza fora dos padrões vigentes, uma de suas modelos mais longevas foi a brasileira Betty Lago, a quem o estilista definiu como "feroz" e devotou horas de passarelas e looks exuberantes, tipicamente teatrais, na década de 1990.

Na última entrevista que deu ao Brasil, concedida a este repórter em 2011, Mugler provou ser o gênio visionário. Entre garfadas em uma salada adornada com dois pedaços de frango com batata frita servidos no restaurante do hotel The Mark, onde costumava se hospedar em Nova York, lamentava que o glamour se perdera com o tempo, mas que, apesar da mesmice, o fetichismo estava, mais uma vez, "saindo armário".

"Há um desejo de libertação, especialmente vindo dos países latinos e das jovens negras. Elas parecem amazonas, guerreiras. Essa ousadia se deve, em grande parte, ao fato de eu ter levado o fetiche à aristocracia", disse Mugler, sem um pingo de modéstia que, sabemos, não era uma de suas características.

Ele sabia o que estava dizendo. Dançarino de formação e responsável, junto a Gaultier, por jogar luz às drag queens e aos personagens da noite parisiense e dar a eles a ribalta das passarelas, ele colhia os frutos de reformar a imagem da maior estrela pop da atualidade.

Beyoncé procurava um estilista que tirasse do papel e do íntimo seu sentimento de se enxergar como um robô no palco. "Falei que ela podia ser um robô, mas dentro de seu corpo havia um animal", afirmou à época.

A turnê "I Am...", de 2009, levou ao guarda-roupa da diva a imagem de poder e sensualidade pela qual ela viria a ser reconhecida, com releituras de modelos clássicos do designer, como o corset motocicleta, criado por ele em 1992, e o indefectível dourado aplicado em um body com laço traseiro, bem a cara das criações mais ousadas de Mugler.

Essa mesma ousadia ele transpôs para o universo dos perfumes. No início dos anos 1990, ele chamou Olivier Cresp e Yves de Chirin para criar uma fragrância que resumisse o espírito animal de suas criações. Mas, em vez de pesar a mão nas notas almiscaradas da época, que exalam cheiro de pele, ele preferiu o ato sexual, um odor que, quando inalado, remetesse a algo que se quer comer.

O perfume Angel, com seu cheiro de chocolate e baunilha, rendeu centenas de milhões de dólares ao criador e continua sendo um ícone das chamadas fragrâncias gourmand, sendo considerada a primeira dessa família olfativa na modernidade.

Sua versão masculina, o "A Man", não ficou para trás e chegou a receber a sugestiva nota de café e pimenta vermelha. Mugler sabia que, pelo prisma da moda, comemos o outro pelos olhos, mas o cheiro também é item crucial nessa fórmula do desejo.

Avesso a retrospectivas de sua vida, porque dizia não se ver como alguém à sombra da vida –ele mantinha, aliás, a rotina de exercícios que o fizeram um fisiculturista reconhecido–, cedeu aos pedidos do Museu de Artes Decorativas de Paris e abriu, no ano passado, seus arquivos para a exposição "Couturissime", em cartaz até abril deste ano.

Isso é, agora, o último ato de um dos estilistas mais teatrais e performáticos da história da moda, incontornável para entender o porquê de a moda se manter como uma das vertentes mais sedutoras da cultura.

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