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Atores de 'Sintonia', da Netflix, atacam burocracia contra a cultura na periferia

Produtores culturais dizem que editais são incompreensíveis e que falta diversidade em júris que elegem os projetos

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São Paulo

Na teoria, os editais públicos de incentivo à cultura têm como função igualar oportunidades a todos os artistas para que, dessa forma, eles possam captar recursos e realizar projetos. Na prática, porém, profissionais da arte com menor estrutura financeira e de regiões periféricas afirmam que a burocracia, a linguagem rebuscada e a falta de diversidade no júri definido para escolher os trabalhos são excludentes.

Atuando nos papéis de Jaspion e Rivaldinho em "Sintonia", série brasileira da Netflix que já tem a terceira temporada confirmada, os irmãos gêmeos Júlio Silvério e Jefferson Silvério, de 36 anos, afirmam que desistiram de se inscrever em editais públicos por causa da burocracia e da falta de representatividade dos jurados.

"É difícil ler e compreender o que está escrito, porque os editais usam termos muito técnicos. Para quem eles escrevem com aquele linguajar? Estamos falando de teatro para a galera da periferia", afirma Júlio.

Dois rapazes fazem gestos com as mãos como uma celebração; o da esquerda usa camiseta de time de futebol amarela do Santos e o da direita, uma listrada do Corinthians
Os atores Jefferson Silvério e Júlio Silvério, de 36 anos, na Okupação Cultural Coragem, na Cohab 2, em Itaquera, na zona leste paulistana - Karime Xavier/Folhapress

O ator afirma que elaborar um projeto para inscrever em um edital é exaustivo. "Devia ser mais transparente [o texto do edital]. Se você escreve fora desse padrão, que parece mais um TCC [trabalho de conclusão de curso], está fora. Parece que só os que conseguem ter mais acesso à educação se destacam. Nisso, a arte fica em segundo plano", diz Júlio, lembrando os editais das esferas federal, estadual e municipal.

Jefferson emenda citando a falta de diversidade nas comissões que elegem os projetos. "Se for falar pelo corte racial, talvez teríamos mais oportunidades se fôssemos brancos."

O ator que interpreta Rivaldinho continua afirmando que nem mesmo a visibilidade de estar em 190 países pela Netflix abre portas. "A bancada é composta por mulheres e homens brancos. Quando devia ter, também, mulheres trans, negras e indígenas, entre outros."

Os irmãos moram na casa da mãe na Cohab 2, em Itaquera, na zona leste de São Paulo, lugar que também é a sede da Éssa Compania, onde os atores e sua trupe costumam ensaiar. O elenco estreia neste mês a quarta temporada de "Ensaio para Dois Perdidos", peça sobre futebol de várzea e teatro que eles costumam encenar nas ruas do bairro ou no coletivo Okupação Cultural Coragem.

"No fim, desistir de inscrever nossos projetos em editais é uma escolha que fez bem para nosso espetáculo. Se dependesse só disso, não faríamos a peça, estaríamos dentro de casa tentando entender o que o edital pede", afirma Jefferson.

Os irmãos Silvério dizem que o custo para manter apresentações no fim de semana é de R$ 18 mil, entre cenário, figurinos, transporte e alimentação e, por essa razão, fazem campanha nas redes sociais para manter a peça em cartaz. O objetivo é arrecadar R$ 25 mil.

Atriz atuante na periferia, Jaqueline Alves Pinto, de 27 anos, nunca conseguiu ter um trabalho contemplado por um edital, apesar de ter tentado um da prefeitura. "Além da linguagem impossível de entender, há exigências de documentos que eu nem sabia que existiam. É muito complexo."

Alves Pinto conta que, enquanto isso não acontece, ela participa de peças de coletivos. "Na periferia, tem quem consiga emplacar seus projetos em editais, mas é a minoria. Por isso, acabamos nos unindo para não deixar de fazer arte."

Os artistas afirmam, ainda, que há profissionais especializados em inscrever projetos em editais, mas que é inviável contratar um especialista. "Nós mal temos dinheiro para o dia a dia, que dirá para contratar um especialista", afirma a atriz.

As situações relatadas pelos artistas distanciam os editais da lei, de acordo com Flávio Leão Bastos, professor de direito constitucional da Universidade Presbiteriana Mackenzie. "Em geral, eles costumam ter linguagem muito técnica, além de serem burocráticos. Mas seu papel é dar oportunidade a todos, pois ele é público. É receber o máximo de ofertas de parcela que compõe uma sociedade, dos mais vulneráveis a artistas famosos."

Já Ferdinando Martins, professor de artes cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, defende que os editais sejam exigentes para manter a qualidade do trabalho que chega ao público e, ainda, por lidar com dinheiro público.

"Já vi erros grosseiros em apresentações de editais, como um grupo que disse que faria uma peça para 1.500 em dez sessões num teatro onde cabiam cem pessoas. Ou seja, a conta não fechava. Isso não pode acontecer, é uma falta de atenção do artista."

Segundo Martins, a questão da linguagem rebuscada em editais não se sustenta. "Existem várias oficinas e grupos em redes sociais em que há trocas de informações que podem ajudar quem tem dúvidas. O artista precisa ter boa vontade em entender que a lógica da administração pública é outra."

​Atriz há 33 anos, sendo os últimos 12 dedicados ao teatro, Gal Spitzer, de 39 anos, afirma também ter desistido de alguns dos editais públicos que, para ela, são excludentes. "Não é só pela burocracia e pela linguagem, mas também pela panela que existe há anos. Só os mesmos ganham sempre, porque são justamente os que sabem as manhas para serem contemplados."

De acordo com a atriz, um grupo seleto conquista os recursos porque há especialistas em editais. "Você tem que ser craque em fazer editais ou contratar alguém que seja para ter alguma esperança de conseguir."

Spitzer diz que contratar especialista em emplacar editais pode custar caro. "Tem uns que ficam com uma porcentagem. Outros cobram valores que variam de R$ 1.000 a R$ 10 mil. Varia de acordo com o tamanho do projeto", afirma a atriz, que está em cartaz com a peça "Ex Bom É Exumado".

Mesmo que o artista seja contemplado por algum edital, segundo Spitzer, ele vai sofrer com a burocracia posterior. "Aí tem que contratar alguém para captar recursos, como é o caso da Lei Rouanet. São vários estresses, dá preguiça, aí é mais fácil fazer por conta própria."

Homem è esquerda olha para duas mulheres, uma de vermelho, ao centro, e para outra vestida com roupão preto e cinza
Silvio Toledo, Ellis Luise e Gal Spitzer em cena do espetáculo teatral 'Ex Bom É Exumado' - Andre Stefano/Divulgação

Martins, o professor da USP, afirma que não são poucos os recursos disponíveis em editais. "Poderia haver mais, claro, mas existe, sim, uma preocupação e um esforço das comissões, pelo menos das que participei, em incluir o máximo possível de grupos contemplados."

Revisão de posturas

A Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, em nota, afirma que desde 2019 visa desburocratizar os regulamentos, reduzindo exigências e tornando mais claros os critérios de seleção. Diz ainda que em 2021 foram destinados R$ 204,5 milhões a 63 editais.

O estado lembra que oferece edital específico de cidadania cultural voltado "para artistas de favelas, comunidades e periferias". Por fim, afirma que a Lei do ProAC, o Programa de Ação Cultural, obedece aos princípios de transparência e impessoalidade que regem a administração pública estadual.

A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Cultura, informa em nota que ao longo de 2020 e 2021 os editais foram revisados na tentativa de facilitar a linguagem e sua interpretação para gerar menos dúvidas e maior facilidade e alcance de acesso.

A nota segue afirmando que a prefeitura se preocupa com a diversidade de gênero e raça em seus editais, que busca democratizar o recurso, a diversidade cultural dos projetos em sua seleção e destaca programas dedicados a coletivos da periferia.

Questionada sobre a falta de diversidade, a linguagem rebuscada e a burocracia, a Secretaria Especial da Cultura, sob gestão de Mario Frias, do governo Jair Bolsonaro, não se manifestou até o momento da publicação.

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