Descrição de chapéu Moda Semana de 1922

Entenda como Tarsila e os modernistas importaram o conceito de 'chic' da Europa

Projeto nacionalista da Semana de 22 não chegou ao guarda-roupa dos artistas, que reafirmaram o gosto por importados

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Autorretrato da artista Tarsila do Amaral de 1923 Reprodução

São Paulo

​Oswald de Andrade provocou —"tupi or not tupi?". À luz do centenário da Semana de Arte Moderna, celebrado neste mês, a resposta à questão levantada em seu "Manifesto Antropófago" poderia ser "depende".

Não que a partir daqueles três dias de fevereiro em 1922, organizados numa São Paulo pujante como comemoração antecipada do centenário da Independência do Brasil, a literatura e as artes visuais brasileiras não tenham mudado para sempre. Porém, a gênese modernista de lançar um projeto de construção da identidade nacional foi até a página dois. Ou até a porta do guarda-roupa.

É certo que as mudanças de estilo acompanham as rupturas culturais. O art déco, por exemplo, lançou o funcional minimalista de Coco Chanel. O surrealismo foi motor da exuberância onírica difundida por Elsa Schiaparelli. E a ascensão da classe operária foi responsável pelo casual alinhavado em jeans de Levi Strauss.

O modernismo brasileiro, contudo, reafirmou o gosto das elites pelo estilo internacional e uma herança de moda colonial que até hoje repercute na idealização do Brasil sobre o "ser chique". É o que afirmam teóricos e curadores que se debruçaram sobre o tema nos últimos meses.

A começar pelo casal Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade. Se a lupa direcionada ao passado da miscigenação e o rompimento com a academia foram as sementes que inspiraram o modernismo, íntimo das escolas fauvistas e dadaístas e do futurismo italiano, a dupla não escolheu para a criação de seu figurino as mesas de corte do interior, ou mesmo as das capitais, mas sim as de Paris, especificamente a dos ateliês dos estilistas Jean Patou e Paul Poiret.

O último, emblema da belle époque, era o maior nome de estilo no início do século e fundou as bases do pensamento de mesclar o exótico, por assim dizer —inspirado no que chamou de "orientalismo"—, à costura clássica. No livro "O Guarda-Roupa Modernista", que a pesquisadora Carolina Casarin lança nesta semana pela Companhia das Letras, se descortinam as viagens dos dois a Paris e o modo como a relação com Poiret foi decisiva para a imagem que queriam transmitir, meio excêntrica, meio conservadora, uma modernidade fora de moda.

Tarsila do Amaral escolhe a mistura de xadrez e pele, cores elétricas e sobriedade que sucedeu os "loucos anos 1920", o cabelo cortado na última moda europeia e a silhueta solta. Oswald de Andrade, por sua vez, adota a moda esportiva e, em alguma medida, cores chamativas, influenciado pelo estilo perpetuado pelos futuristas, principalmente aquele do pintor Giacomo Balla.

"Existe uma vontade de criar um estilo heterogêneo, que se identifica com o modernismo pela teoria. Mas não havia moda brasileira nessas escolhas", afirma Casarin.

Em abril do ano passado, a mostra "A Arte da Moda - Histórias Criativas" desnudou no Farol Santander, em São Paulo, esse distanciamento do ideal dos modernos com a nascente produção nacional de moda. Em espaço dedicado a Tarsila em que se via partes de seu vestido de casamento, assinado por Poiret, a curadora Giselle Padoin explicitava o exotismo da identidade do estilista ao mostrar como ela fora construída a partir de elementos do balé russo e dos países asiáticos.

"Durante esse período [a primeira metade do século 20], a moda brasileira vestida pela elite era praticamente toda francesa. Até hoje, se olharmos com atenção, é a Semana de Moda de Paris que chama a atenção dessas pessoas", disse Padoin.

Para além do casal ícone da Semana, Mário de Andrade talvez tenha sido, segundo pesquisadores e estilistas, o que chegou mais perto de adotar um estilo genuinamente brasileiro tal qual ansiado pelo modernismo.

Nas viagens patrocinadas por Olívia Penteado a recônditos brasileiros, ele adotou de camisolões de linho a chapéus de palha, passando por calças encurtadas, que remetiam a um certo estilo interiorano criado pelos sertanejos. Mas logo voltou, como disse em uma de suas cartas a Manuel Bandeira, "às roupas bestas e à minha vida besta".

Do ponto de vista histórico, tanto os modernistas quanto a própria elite cafeeira paulistana da época foram vítimas das influências que irradiavam da França. João Braga, professor da Faculdade Santa Marcelina e coautor do livro "História da Moda no Brasil - Das Influências às Autorreferências", publicado pela Pyxis, defende que o modernismo "aplicou a semente de uma postura de diferenciação no comportamento, mas reproduziu a máxima de que o que é bacana vem de fora, porque, sejamos sinceros, na moda, adoramos uma coisinha importada", diz.

Braga conta que essa subserviência do vestuário brasileiro data dos tempos coloniais. Em 1785, antes de chegar, contrariada, ao Brasil, a rainha dona Maria 1ª, mãe de dom João 6º, baixou uma lei proibindo editar livros e tecer tecidos sofisticados por aqui. Só fibras para a confecção da roupa dos escravos eram permitidas.

"Fica estabelecido, assim, que o que era de melhor qualidade viria da sede, ou seja, da corte portuguesa, que, assim como toda a Europa, usava a moda francesa", afirma ele.

Como resposta à imposição, o interior do país passou a produzir, ilegalmente, seus próprios tecidos de algodão. Foi assim que Minas Gerais se firmou como polo têxtil —o lugar não era rastreado pela corte, que só fiscalizava o litoral brasileiro.

A segunda grande virada que reforça essa linha do tempo sobre o ideal de nobreza do país é a abertura comercial dos anos 1990, promovida pelo então presidente Fernando Collor de Mello. A concorrência internacional destruiu boa parte das confecções e deixou à sombra a produção dos estilistas locais. "Mais uma vez, o Brasil teve de olhar para o próprio umbigo para se posicionar", diz Braga.

Foi só muito depois que uma unidade de moda nacional nasceu, em São Paulo. Antes, houve Zuzu Angel, primeira –e solitária– modernista tardia da moda brasileira, que nos anos 1970 ilustrou em criações o legado têxtil e iconográfico do país. E, uma década depois, em 1987, a publicação de "Modos de Homem e Modas de Mulher", em que Gilberto Freyre destila suas impressões sobre como os brasileiros adaptaram as influências europeias para construir seus guarda-roupas.

Dali, demorou quase outra década para que um grupo de estilistas, que incluiu Alexandre Herchcovitch, Walter Rodrigues e Ronaldo Fraga, começasse a pensar o estilo a partir de um olhar direcionado aos hábitos do país. Mesmo que, em alguma medida, eles ainda bebessem das mesmas referências da costura clássica europeia.

"Ainda assim, somos inseguros em assumir nossa própria identidade. O colorido ainda é visto como algo brega, veja só. Acredito que, de alguma forma, conseguimos mostrar ao mundo o que o Brasil pode ser", lembra Walter Rodrigues.

Hoje diretor criativo do evento gaúcho Inspiramais, voltado para a indústria de acessórios de couro e que tem como um de seus propósitos traduzir e aplicar as tendências globais na produção da indústria nacional, ele afirma que só agora é possível ver com clareza as raízes brasileiras nas passarelas.

"Principalmente vindo de designers negros, como os do projeto Sankofa", diz Rodrigues, lembrando o projeto que retoma na São Paulo Fashion Week as origens pré-coloniais e as matrizes africanas na roupa. "Há uma tentativa de romper de vez com o eurocentrismo de nossa moda, ainda que, é verdade, seja difícil ver a elite adotando o discurso na prática", diz.

Fraga vai além e afirma que "retrocedemos ainda mais". "Há uma crise estética sem precedentes em curso no Brasil, que nega seus símbolos. Um empobrecimento estético em várias esferas que, na moda, coloca a Zara como primeira opção."

Segundo o estilista, eventos como o da Rhodia, nos anos 1960, até tentaram aproximar a produção de moda da artística, quando estilistas reproduziram em roupas as telas de artistas brasileiros e as apresentaram em eventos em que música nacional era tocada ao vivo. Mas, de acordo com ele, como nossa educação não compreende que vestir, o que comer e como morar, nos afastamos do que seria próprio do país.

Ele, que se intitula um "turista aprendiz", referência ao livro de seu ídolo e guru estético Mário de Andrade –neste momento, aliás, o designer está em expedição pela Paraíba para pescar referências de suas coleções— afirma que só a gastronomia da zona rural ganhou espaço no luxo dos trópicos.

"Mas, no geral, o topo da pirâmide, que é quem tem poder para consumir uma nova ideia de estilo, não está nem aí. Há casos isolados, é claro, mas a sensação é de que quando a gente pensa que não vem uma elite mais burra, logo aparece outra."

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior deste texto afirmou incorretamente que o decreto proibindo manufaturas no Brasil foi assinado após a chegada da família real ao país, em 1808. O correto é que ele foi publicado em 1785. O texto foi corrigido.

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