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Brasil vira uma alegoria do suicídio geral em romances apocalípticos da pandemia

Bernardo Carvalho e Joca Reiners Terron estão entre autores que não veem futuro adiante

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pessoas na rua em imagem com cores invertidas

Imagem da série "Glitch" Tuca Vieira

São Paulo

“O Brasil da pandemia tem um sentido quase vanguardista de representação do horror”, afirma o escritor Bernardo Carvalho, num tom de voz que nunca deixa de ser calmo e exasperado ao mesmo tempo. “É quase como se o país fosse um emblema radical, uma espécie de alegoria do suicídio geral.”

“A despeito desse sinal vermelho, a gente está acelerando em direção ao muro”, afirma o autor sobre a nossa resposta, ou ausência dela, à calamidade sanitária. “É como se dissessem, ‘tudo bem, a gente entendeu, mas foda-se, não tem como frear’.”

Essa angústia com a incapacidade brasileira de dar um cavalo de pau para escapar da tragédia tem proliferado na literatura. A gestão cega da pandemia, o empilhamento de centenas de milhares de mortos e a constante crise institucional em Brasília têm gerado uma arte impregnada de ares apocalípticos.

“O Último Gozo do Mundo”, a novela que Carvalho está publicando, acompanha uma mulher que vê sua vida ruir e, desconcertada, parte numa viagem em busca de um misterioso vidente —uma figura que tem como maior credencial para supostas previsões do futuro o fato de ter perdido completamente as lembranças do passado.

Dessa forma, a obra critica a ode ao messianismo numa terra que não vê valor na memória, e isso num tempo pandêmico em que o presente se esparrama numa série de dias infindáveis.

Ainda que tudo fique no terreno do alegórico e da parábola, citando poucos nomes e fatos concretos do Brasil bolsonarista, é incontornável perceber que “O Último Gozo do Mundo” foi escrito durante
a experiência de quarentena do autor em São Paulo.

“Depois de meses esmagados no presente, tinham desaprendido a fazer projetos, desconfiavam das expectativas. O futuro era uma abstração obscena”, crava a obra que Carvalho, colunista deste jornal, define como “um arremedo de fábula sem moral”.

A impossibilidade atroz de enxergar qualquer perspectiva de futuro também guia a narrativa de “O Riso dos Ratos”, o mais recente romance de Joca Reiners Terron.

O autor não é nada estranho ao tom apocalíptico, e sua literatura sempre usou o bizarro e o fantástico como ingredientes importantes. Mas, agora, algo está diferente.

“Meus livros eram muito calcados no aspecto imaginativo das histórias. No entanto, ultimamente a realidade parece ter adquirido uma capacidade própria de imaginar”, diz Terron. A ficção do autor, assim, ganha um tom mais grotesco do que nunca, apenas se deixando entremear pela vida real.

O protagonista sem nome de “O Riso dos Ratos” é um sujeito que “assim como nós, está preso a um presente permanente, à medida que a possibilidade de futuro se achatou”. “Não consigo escrever agora um livro que explore a ideia de futuro”, lamenta o autor.

A trama do personagem principal é disparada quando ele se vê desolado pelo diagnóstico de uma doença terminal e por uma violência brutal sofrida pela filha —e então se atira numa espiral obsessiva que o impede de ver com clareza que o mundo ao seu redor está desmoronando.

“Apurando a audição, ele se esforçou para captar algum ruído corriqueiro da cidade que ainda existia ao redor”, escreve o romance em determinado trecho, que ecoa os primeiros traumas com a imposição da quarentena. “Qualquer sinal que comprovasse a cadeia das mãos humanas por trás deles, pondo a cidade em movimento, acendendo postes, mas não escutou nada.”

O que acontece em seguida, no estilo surrealista de Terron, é que a trajetória do personagem espelha uma história do Brasil escravista ao contrário. Ele passa a habitar um mercado —ironicamente, uma filial do Futurama—, então um quilombo, uma plantação e o porão de um navio.

Não é muito difícil enxergar ali a metáfora de um país que anda para trás, e um governo que, nas palavras de Terron, promove retrocessos sociais. “Estamos perdendo conquistas simbólicas da sociedade. As pessoas têm manifestado essa preocupação, e os jornais abordam concretamente o que está se perdendo com o aparelhamento e o desbaratamento das instituições promovido pelo governo.”

No romance de Bernardo Carvalho, que intercala outras histórias à da protagonista de forma fragmentária, a situação também desemboca num surto de confortável negacionismo. “Na falta de imunidade ao vírus, mais de um terço da população tornou‑se imune à realidade”, como diz um trecho.

“É estranho", afirma seu autor. "É um governo que obviamente vai destruir a Amazônia, poucas pessoas vão ganhar com isso —e no fim vão acabar perdendo de qualquer jeito—, mas é uma sociedade que não se rebela contra isso. Está sendo espoliada, sem nenhum artifício para disfarçar, e ainda assim não se mobiliza.”

O flerte com a ideia de fim de mundo também se apresenta no “Projeto Decamerão”, uma publicação idealizada pelo jornal The New York Times que convidou escritores de todo o mundo para criar contos sobre a pandemia, inspirados no clássico da Idade Média, também escrito sob o impacto de uma peste.

A americana Rivers Solomon cria personagens de uma família negra que lidam com o coronavírus como o anúncio do armagedom, mas a visão mais desesperadora na coletânea é a do —adivinhe— brasileiro Julián Fuks.

Em “No Tempo da Morte, a Morte do Tempo”, um conto ensaístico, o autor costura o torpor da passagem das horas e da contagem das vítimas na pandemia com a confiança de que o tempo, enfim, acabará com “os homens sombrios que nos governam”, num desfecho que resvala na superação do pessimismo.

A postura pessimista pode parecer um sintoma de pura desmotivação. Mas talvez essa seja uma visão errada, segundo Bernardo Carvalho, que carrega o pessimismo como uma insígnia.

“O otimismo me parece sempre meio burro e paralisante. Algo no pessimismo é criativo. A narração toma uma distância reflexiva do mundo, é um permanente descontentamento com o presente. O otimismo me parece uma satisfação com o que você tem.”

O escritor lembra o afã do movimento “Somos 70%”, que há alguns meses procurava congregar opositores do presidente Jair Bolsonaro com o que soava a ele como otimismo excessivo de mobilização. Seu livro recente, aliás, tem todo um desvio narrativo que compara o pensamento positivo a uma forma de estupidez.

“Quem está indo em direção ao muro são as pessoas que dizem que está tudo bem. Essa posição é a da cegueira, do negacionismo", diz ele. "Embutido no pessimismo, como eu o entendo, está uma força incrível de crítica e de superação.”

O Último Gozo do Mundo

  • Preço R$ 49,90 (144 págs.); R$ 29,90 (ebook)
  • Autoria Bernardo Carvalho
  • Editora Companhia das Letras
  • Lançamento Evento em 7/6 com o autor e Alejandro Chacoff nas redes da editora e da livraria Megafauna

O Riso dos Ratos

  • Preço R$ 62,90 (208 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Joca Reiners Terron
  • Editora Todavia
  • Lançamento Evento em 8/6, às 18h30, com o autor e Juliana Borges no YouTube da Todavia

O Projeto Decamerão

  • Preço R$ 79,90 (336 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Vários
  • Editora Rocco
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