Descrição de chapéu Obituário Geraldo Sarno (1938 - 2022)

Geraldo Sarno, diretor de 'Viramundo' e 'Sertânia', morre aos 83 anos

Cineasta que retratou movimentos migratórios e a cultura popular estava internado com Covid-19

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São Paulo

É lamentável que Geraldo Sarno, morto na noite desta terça (22) em decorrência de complicações causadas pela Covid-19, tenha ido embora exatamente quando sua obra parecia chegar ao apogeu.

No Festival de Tiradentes de 2020, pouco antes de começar a pandemia, seu "Sertânia" foi o filme que mais deixou boas lembranças, numa mostra cuja tradição consiste, justamente, em encontrar novos valores.

Homem com chapéu
Geraldo Sarno nos bastidores do filme "Sertânia", que ele lançou em 2020 - Divulgação

Mas Sarno, então com 81 anos, nunca se considerou um velho cineasta. Era apenas "jovem há mais tempo", como se definiu naquela ocasião. Com efeito, não há menos vitalidade em "Sertânia" do que em sua estreia, o hoje clássico documentário "Viramundo", de 1965, em que abordava a diáspora nordestina que então se verificava devido à migração para São Paulo e suas decorrências.

Os dois filmes talvez fechem um círculo perfeito, já que "Sertânia" aborda a singular trajetória do cangaceiro Gavião, que troca o cangaço por São Paulo, torna-se policial e depois volta ao cangaço.

No caso de Sarno, esse ir e vir começa em Poções, Bahia, de onde ele saiu para estudar Direito em Salvador. Na segunda metade dos anos 1950, qualquer parte da capital baiana era lugar de agitação cultural —lá estavam Walter da Silveira, o grande crítico de cinema, Martim Gonçalves, no teatro, o maestro Koellreuter, entre outros, tutelando jovens como Glauber Rocha, Helena Ignez, Orlando Senna, Othon Bastos e tantos mais, por sinal não menos ilustres.

Esse movimento levou Sarno ao cinema e, daí, a São Paulo, onde encontrou o grupo de documentaristas que comporiam o que veio a se chamar Caravana Farkas, um conjunto de documentários produzidos e, por vezes, dirigidos por Thomas Farkas. Era o momento do "cinema direto", em que câmeras e aparelhos de som leves permitiam aquilo que Sarno julgava ser central no documentário —surpreender a realidade.

Foi o que fez seguidas vezes no documentário, começando com "Viramundo". Depois viriam diversas incursões ao Nordeste, com trabalhos clássicos como "Vitalino/Lampião", em que captava o trabalho do filho de mestre Vitalino desde que começa a compor a imagem de Lampião, até sua comercialização. Ou o original "Jornal do Sertão", em que examina como formas de comunicação oral como a poesia e os diversos cantares são os modos de produção de um verdadeiro "jornal do sertão" nordestino. Em "Cantoria" registrou o desafio entre dois famosos repentistas. Em "Casa de Farinha" e "Engenho", registrou o trabalho.

Como ele mesmo definiu, era o momento de um trabalho feito na urgência, mas também movido pela necessidade de mostrar uma parte desconhecida do Brasil aos brasileiros. Mas sua consciência do cinema documental era clara, como destaca Gilberto Alexandre Sobrinho na abertura de seu trabalho sobre o cineasta, citando-o em epígrafe: "O que o documentário documenta com veracidade é minha maneira de documentar".

Esse entendimento do documentário —que, ressaltemos, não se detinha por aí— já quase obrigava a um salto à ficção. Este ocorreu em "O Picapau Amarelo", de 1973, com produção de Farkas, e "Coronel Delmiro Gouveia", de 1978.

Apesar do prêmio recebido em Havana por este último, tudo dava a entender que a vocação de Geraldo Sarno era mais o documentário do que a ficção. Mas já em "O Último Romance de Balzac", de 2010, Sarno investigava, misturando a ficção à realidade, o mistério do ato criativo —como já assinalava na época o crítico Fábio Andrade.

De certa forma, "Sertânia", de 2018, é o acabamento dessa investigação. Nela misturam-se fatos da vida de Gavião, seu delírio, o sertão, o fim do cangaço, organizados numa espécie de quebra-cabeça com dois polos: São Paulo e o sertão nordestino.

Geraldo Sarno, que conheceu bem os dois, os via não em oposição, mas como duas faces da mesma moeda. Pode-se pensar em riqueza do atraso sertanejo e miséria do progresso paulista. Mas o filme não se detém aí, visitando boa parte da arte ocidental e reverenciando até Giotto e Homero.

Para Sarno, o documentário era "o momento em que algo se revela, em que cai um certo véu", mas também "em que algo se ilumina na minha relação com o outro". Foi o que construiu ao longo dos anos, em uma obra de mestre que se acha preservada digitalmente no site Linguagem do Cinema, do governo baiano. Mas que conseguiu transportar plenamente à ficção em "Sertânia".

Morto aos 83 anos, quase 84 —que completaria no próximo dia 6—, deixou muita vontade de ver o que mostraria a seguir.

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