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Liberdade sexual, riqueza negra e herança ancestral guiam livro 'Em Carne Viva'

Autora de 'Um Outro Brooklyn', Jacqueline Woodson conta a história do século 20 pelas vidas de uma família afro-americana

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São Paulo

Enquanto lia clássicos da literatura americana no meio da noite, ao dar o peito à filha recém-nascida, os pensamentos de Iris vagavam. A menina havia se imposto com tanta dor ao seu mundo que parecia ter mudado as suas características mais fundamentais. "Mas não tinha", rebate a mulher contra si mesma logo em seguida.

"Quando os olhos ardiam na luz fraca de leitura do abajur, ela sabia que era a mãe dela, e a mãe da mãe dela e assim por diante que a conduziam, numa cadeia que não podia ser rompida. A história da vida dela já havia sido escrita. Com bebê ou sem bebê."

Esse equilíbrio entre a cadeia inquebrantável da ancestralidade familiar e a busca pelo livre-arbítrio está em todas as páginas de "Em Carne Viva", a elogiada nova incursão de Jacqueline Woodson pelos romances adultos após o popular "Um Outro Brooklyn".

mulher sentada em pedra e descalça
A escritora americana Jacqueline Woodson, autora de 'Em Carne Viva' e 'Um Outro Brooklyn' - Divulgação

"Vejo Iris como alguém em constante mudança, que está crescendo em direção à pessoa que será e escapando às mãos dos que querem definir o que ela deveria estar fazendo", afirma a autora sobre sua protagonista. "Eu a queria mostrar como alguém que está se tornando algo, daí o título, que me remete a algo que ainda não está bem acabado."

Definir Iris como "protagonista" é um recurso de mera didática. Ainda que o livro gire em torno de sua história —de como ficou grávida aos 15 anos e decidiu deixar a filha com o pai enquanto explorava as possibilidades sexuais e intelectuais do ambiente universitário—, "Em Carne Viva" se constrói de um coral de personagens da mesma família, todos bem lapidados.

Começa com a voz da tal filha, Melody, chegando a sua festa de 15 anos na virada para o século 21; cede o bastão ao pai, o esforçado Aubrey, passa para o avô, Po’Boy, e à avó, Sabe, que conta a certa altura como sua mãe fora vítima do massacre contra negros em Tulsa, em 1921. Tudo circula de volta a Melody.

Woodson diz que a estrutura do livro, fragmentária mas cuidadosamente bem disposta, vem da tentativa de contar a história econômica dos negros por meio daquela árvore genealógica.

"Tulsa é um dos muitos momentos dos Estados Unidos em que as fortunas negras foram destruídas. Aquela foi uma época com vários episódios de brancos destruindo cidades e comunidades inteiras de negros. E, ainda assim, os negros encontraram coisas em que se fiar, como a riqueza de seu humor, de seus amores, de seu orgulho."

Ao contar a história de cada um de seus personagens, Woodson consegue não só deslocar o foco narrativo, mas se ambientar em diferentes gerações, explorar a evolução dos costumes e, para citar uma das paixões mais latentes da autora, dançar novos estilos musicais.

Essa multiplicidade —e essa ginga— já davam o tom de "Um Outro Brooklyn", que revelou a autora aos leitores brasileiros há dois anos com uma história baseada em sua própria juventude na Nova York dos anos 1970, uma trama agridoce sobre os destinos de quatro amigas que tira o melhor sumo das memórias e canções daquela época.

Se Woodson já tinha antes uma carreira premiada como escritora infantojuvenil, foi esse o livro que provocou um salto no seu reconhecimento crítico, agora ampliado neste "Em Carne Viva", mais extenso em escopo e firme em estrutura.

"Como Melody afirma bem no início, ela sabe que é parte de uma longa narrativa que não começou com ela", comenta a autora no áudio que envia ao repórter. "É por isso que eu começo o livro com a palavra ‘mas’. Quero que o leitor saiba que está entrando no meio de uma história."

O respeito da autora por seus antepassados, explícito até nos agradecimentos do livro, provoca uma escrita afetuosa e esmerada em detalhes. Como quando Aubrey, ao ver a fartura do banquete de aniversário da filha, vai desfiando pela memória as marcas de enlatados que comia na sua infância de privação, e as delícias que desejava com gula.

O repórter pergunta se Woodson enxerga a literatura mais como um meio de preservar algo que já passou ou de criar algo que ainda não existe. "Os dois ao mesmo tempo", diz, sem demorar um segundo. "E é isso que a torna tão bonita."

Em Carne Viva

  • Preço R$ 59,90 (144 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Jacqueline Woodson
  • Editora Todavia
  • Tradução Claudia Ribeiro Mesquita
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