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Com 'A Rua', Ann Petry foi primeira autora negra a se tornar uma best-seller

Romance explora tragédias e dores de personagens para trazer à superfície a sede por liberdade e pelo direito de viver

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Fernanda Silva e Sousa

Crítica literária e doutora em letras pela Universidade de São Paulo

A Rua

  • Preço R$ 139,90 (352 págs.)
  • Autoria Ann Petry
  • Editora Carambaia
  • Tradução Cecília Floresta

Em 1993, Toni Morrison se tornou a primeira mulher negra a ganhar o prêmio Nobel de literatura, seis anos depois da publicação de "Amada", seu romance mais aclamado.

Numa trama ambientada na escravidão, acompanhamos Sethe, uma escravizada que tenta matar os filhos para que não sejam escravizados e desafia os limites que o sistema escravista impõe ao seu exercício da maternidade, num corajoso gesto de recusa da vida que é levada a ter.

É esse gesto de recusa que marca o primeiro romance de uma mulher negra a vender milhões de cópias, muito antes de Morrison –"A Rua", de Ann Petry, escritora e jornalista afro-americana.

Publicado em 1946, a obra é protagonizada por Lutie Johnson, uma mulher negra jovem, alta e bela que irrompe nas primeiras páginas em meio aos ventos frios e à pobreza, quase como uma força da natureza, lembrando Iansã, o orixá dos ventos, em busca de um lugar para morar e para proteger o filho Bub, de oito anos, das "armadilhas" da rua.

retrato de mulher negra na primeira metade do século 20
A escritora americana Ann Petry em retrato sem data de Edna Guy - Edna Guy/Harvard Magazine/Reprodução

Petry constrói uma protagonista que, pobre, separada e mãe solo de um menino negro, vivendo no bairro nova-iorquino do Harlem da década de 1940, enfrenta uma realidade em que "no instante em que as pessoas viam a cor de sua pele, elas sabiam o que Lutie devia ser". Mesmo seduzida pela ideologia da meritocracia, é a recusa que fundamentalmente a movimenta. Lutie recusa os homens, a pobreza e, principalmente, a rua.

No livro, a rua é a 116th Street, onde vivem mulheres exaustas e solitárias, bêbados, prostitutas, malandros, trabalhadores encardidos e explorados, onde mulheres negras como Lutie tentam sobreviver e sair "do cerco murado" para onde foram empurradas pelo mundo branco.

A rua é, assim, um elemento concreto e simbólico da condição existencial da população negra, onde mora o perigo, mas é também onde existe a possibilidade de uma liberdade precária e fugaz.

É essa mesma rua que se transforma em uma "sala de estar ao ar livre", onde as pessoas escapam das "armadilhas sujas, escuras, imundas" que são os apartamentos onde vivem.

Sem deixar de desnudar a miséria, Petry faz ecoar em sua narrativa "o som das risadas, o burburinho das conversas, a visão das pessoas e as luzes brilhantes, a música ritmada do jukebox", bem como a voz de Lutie que, cantando, fazia qualquer música "contar uma história que não era contada em sua letra —uma história de desespero, de solidão, de frustração".

Solitária e assediada, Lutie é uma jovem obstinada em conseguir uma "boa vida por si mesma" e em criar Bub "para ser um homem bom e forte", recusando investidas masculinas e uma vida limitada pelas urgências da sobrevivência. Estas não são maiores do que o senso de dignidade, a audácia e a coragem de mulheres como Lutie, que construía "uma imagem de si mesma diante de um microfone em um vestido de tafetá longo que farfalhava suavemente".

Além de Lutie, outras duas mulheres nos impressionam no romance, a senhora Hedges e Min.

Senhora Hedges é uma idosa negra e gorda, dona de um pequeno prostíbulo no prédio de Lutie, onde vivia na janela e aprendia muito ao observar "tantas pessoas com fardos pesados demais para carregar" e "garotas solitárias e tristes recém-chegadas do Sul", enquanto Min é a mulher do zelador do edifício, explorada pelos homens com quem morou, pois "era muito solitário viver sozinha em um cômodo alugado", mas que se recusava "a não ter nada na vida" de novo. Ambas, marcadas por dores profundas do passado, tentam improvisar no presente uma vida minimamente digna.

Petry, ao mergulhar nas tragédias e dores dessas personagens, sobretudo Lutie, traz à superfície a sede por liberdade, a insistência no direito de viver e a recusa radical de mulheres negras em relação ao que o mundo as oferece.

Furiosa, sonhadora e insubordinada, Lutie não é uma força da natureza, mas uma mulher comum que, como canta Milton Nascimento e como Sethe, em "Amada", age como alguém que "merece viver e amar como outra qualquer do planeta" –e sofre as implacáveis consequências disso.

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