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'O Golpista do Tinder' é clickbait que tenta se passar por documentário

Produção expõe caso surreal de trapaceiro que extorquiu quase US$ 10 milhões de mulheres fingindo estar apaixonado

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O Golpista do Tinder

Apesar do título, "O Golpista do Tinder", lançado agora na Netflix, não tem muito a ver com o aplicativo de encontros indissociável dos relacionamentos contemporâneos. O Tinder é só o jeito com que o tal golpista, que fingia ser herdeiro do "rei dos diamantes" israelense Lev Leviev, estabelecia o primeiro contato com as suas vítimas. Ludibriadas por jantares caros, roupas de marca e viagens de jatinho particular frequentes, as mulheres eram então convencidas a transferir centenas de milhares de dólares para ele.

Para quem chegou ao documentário por causa dos seus produtores, os mesmos do inacreditável "Don’t F**k with Cats", essa desconexão com a questão tecnológica decepciona. Também disponível na Netflix, a série documental sobre como um grupo de fanáticos por gatos se juntou para caçar um torturador de animais no YouTube e acabou ajudando a polícia a prender um serial killer —de humanos, vale esclarecer— não só conta um caso tão ou mais absurdo quanto o do farsante de agora, como ilumina o poder da internet, para o bem e para o mal.

Já a rocambolesca trama do novo documentário poderia ter acontecido em quase qualquer momento histórico, com ou sem redes sociais e apps de namoro. Ela é narrada por três vítimas do vigarista, todas belas loiras de países nórdicos —o "Golpista do Tinder" tinha um tipo. Com um estoicismo admirável para quem perdeu entre US$ 30 mil a quase US$ 250 mil, contam como foram conquistadas pela personalidade afetuosa do embusteiro e por suas promessas de alugar um apartamento juntos, formar uma família.

As entrevistas são intercaladas com planos de animações de conversas no WhatsApp e no Instagram e encenações das situações narradas em que só se veem detalhes de objetos, silhuetas, mãos em close. É uma espécie de uma versão mais elegante, mas não menos afeita a ilustrar literalmente os acontecimentos, daquela dos antigos programas de TV de true crime.

cena de documentário
Cena de dramatização do documentário 'O Golpista do Tinder', exibindo apenas detalhes do rosto de um dos personagens envolvidos na trama - Divulgação

O conto de fadas que elas acham estar vivendo cai por terra quando o vigarista alega estar sendo perseguido por seus inimigos nos negócios. Diz que não pode mais fazer compras com seus cartões de crédito ou será localizado. E passa a pedir quantias cada vez maiores às mulheres, que recorrem a empréstimos com juros altíssimos e aumentam diariamente os limites de seus cartões de crédito para atender aos pedidos do homem que dizia estar apaixonado por elas.

O golpe, que descobrimos ser um verdadeiro esquema de pirâmide, com vítimas globais e uma estimativa de US$ 10 milhões roubados, é uma façanha e tanto. Não à toa, a reportagem do jornal norueguês VG que expôs o criminoso e serve de base para toda a segunda parte do documentário viralizou.

O problema é que duas das três vítimas que puxam a narrativa parecem tão irreais quanto o tal feito. Faltou a diretora confrontar essas mulheres com a mesma pergunta que o espectador repete mentalmente ao longo das duas horas de duração do filme —como, mas como essas mulheres não desconfiaram que havia algo errado, ou ao menos comentaram a situação com alguém próximo, antes de esvaziarem voluntariamente suas contas bancárias?

É verdade que não se deve confundir documentário e reportagem jornalística —não se pode esperar de um filme o mesmo tipo de visão global que uma apuração propõe. Mas a aparente entrega das vítimas do "Golpista do Tinder" parece contaminar também a câmera. Umas aulinhas com Werner Herzog não cairiam mal.

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