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Spotify nutre polêmicas com artistas, mas se tornou 'mal necessário' para a indústria

Apesar de protestos e boicotes, receita e divulgação enormes impedem que jovens estrelas desistam da plataforma

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Ben Sisario
The New York Times

​O Spotify chegou mais de uma década atrás com uma proposição atraente –os ouvintes poderiam deixar de lado seus CDs e downloads e ter acesso via streaming a todas as canções que já foram lançadas. Isso fez da plataforma uma das grandes potências no negócio da música e estimulou o surgimento de concorrentes como a Apple Music, Amazon Music e Tidal, o que ajudou a reverter a queda profunda que a indústria da música vinha sofrendo.

O Spotify continua a ser o maior serviço de streaming de música. Mas alguns anos atrás decidiu acrescentar um novo formato, que começava a atrair atenção, ao seu portfólio –os podcasts. A decisão fez do serviço um bufê misto de entretenimento sonoro —parte serviço de música, parte veículo noticioso, parte uma rádio de fofocas em permanente atividade. E também pode ter posto a empresa em rota de colisão com os artistas e deixado os ouvintes com um acervo de canções menos que completo.

Um smartphone e um headset em frente a um telão com a logomarco do Spotify - Dado Ruvic/Reuters

Na semana passada, Neil Young causou uma tempestade na indústria da música e na mídia social ao exigir que suas canções —que incluem clássicos do rock como "Heart of Gold" e "Cinnamon Girl"— fossem removidas do Spotify. Ele estava protestando contra o apoio da empresa a Joe Rogan, astro dos podcasts que ela tem sob contrato e vem sendo criticado por promover desinformação sobre o coronavírus e as vacinas.

Mesmo em uma era na qual empresas de tecnologia como o Twitter, YouTube e Facebook policiam constantemente o conteúdo sobre a Covid-19 em suas plataformas —e enfrentam reações negativas dos dois lados do debate sobre a liberdade de expressão por fazer isso—, o acontecido foi um exemplo raro de um músico importante adotando uma posição que poderia prejudicar o seu faturamento. Young disse que 60% do dinheiro que ele fatura com o streaming vem do Spotify.

Seu exemplo foi seguido rapidamente por Joni Mitchell, outro ícone da música cuja influência cultural excede em muito o impacto comercial que ela tem online. Depois, a cantora de R&B India Arie e dois músicos que tocaram com Young —o guitarrista Nils Lofgren e Graham Nash— anunciaram que removeriam sua música do Spotify em solidariedade.

A retirada de Young levou a rápidas jogadas de marketing por concorrentes do Spotify. A Apple veiculou um anúncio em que se definia como "a casa de Neil Young", e a a SiriusXM recriou seu canal Neil Young.

Até agora, o impacto comercial da controvérsia não está claro. Muitos usuários foram às redes sociais para declarar que estavam cancelando suas assinaturas do Spotify.

No último domingo, depois que a maior parte da música de Young e Mitchell foi removida do serviço, Daniel Ek, fundador e presidente-executivo do Spotify, divulgou as regras de uso de sua plataforma e disse que o Spotify acrescentaria rótulos de "orientação de conteúdo" aos episódios de podcast que falem sobre a pandemia. "É importante para mim que não ocupemos a posição de censores de conteúdo", disse Ek. Rogan prometeu em um vídeo que seu programa ofereceria uma posição mais "balanceada", e disse que era fã da música de Young e de Mitchell (embora a tenha confundido com a cantora Rickie Lee Jones).

Só o futuro dirá se isso é suficiente para conter uma possível revolta de artistas, mas o desafio de Young se tornou tema de debate cultural imediato. No episódio de terça-feira do programa "The View", na rede de televisão ABC, Joy Behar apelou a jovens estrelas como Taylor Swift que escolham um lado na disputa.

"Precisamos ver alguns jovens fazendo o mesmo", disse Behar. "Vamos ver se Taylor e esse pessoal assumem uma posição."

Para os observadores veteranos do Spotify, o caso de Young é o mais recente exemplo de desgaste no relacionamento complexo e frequentemente conturbado entre a empresa e os artistas. Boa parte dos problemas envolve dinheiro.

Em 2014, Swift removeu seu catálogo inteiro do Spotify, afirmando que o modelo "freemium" do serviço —a empresa combina acesso grátis para ouvintes que têm de ouvir publicidade e acesso pago que permite remover os anúncios e oferece outros benefícios— não oferecia remuneração justa aos artistas por seu trabalho; ela só voltou a botar suas músicas no serviço de streaming quase três anos mais tarde.

Recentemente, muitos músicos se pronunciaram sobre o que veem como injustiça generalizada do modelo de streaming —sob o qual cada execução de uma canção gera apenas uma fração de centavo de dólar em pagamento—, e o Spotify e o YouTube foram os serviços mais criticados.

O Spotify já teve problemas com relação a questões de censura no passado. Em 2018, a empresa tentou por breve período remover de suas playlists canções de R. Kelly e do rapper XXXTentacion – ambos acusados de crimes sexuais—, invocando uma regra sobre "conduta odiosa", mas cancelou a iniciativa depois de uma série de protestos no setor.

Mas agora já não é mais tão fácil para um artista abrir mão do Spotify. O streaming hoje responde por 84% da receita do setor de música nos Estados Unidos, de acordo com dados setoriais, e o Spotify tem 172 milhões de assinantes pagantes —cerca de 31% do total mundial e mais que o dobro de seu concorrente mais próximo, a Apple Music, de acordo com a Midia Research, uma empresa de pesquisa de mercado.

Isso fez do Spotify um parceiro financeiro essencial das gravadoras e um "mal necessário" para os artistas, disse George Howard, professor associado do Berklee College of Music, em Boston, e ex-executivo de gravadoras e serviços digitais de música.

"Não há muitos artistas que diriam amar o Spotify", afirmou Howard. "Mas muitas gravadoras, quer gostem, quer detestem os valores do Spotify, estão absolutamente felizes com o volume de dinheiro que vêm recebendo."

A posição de Rogan nos negócios do Spotify fez de seu programa, "The Joe Rogan Experience", um alvo importante para os críticos. Embora muitos podcasts sejam distribuídos amplamente por múltiplas plataformas, o de Rogan é exclusivo do Spotify, depois de um acordo de licenciamento assinado em 2020 com valor reportado de US$ 100 milhões ou mais, embora o Spotify jamais tenha confirmado a quantia. Na interpretação dos críticos, isso faz do Spotify a editora do conteúdo do programa de Rogan, e portanto agudamente responsável por ele.

Joe Rogan em cena de seu show na Netflix "Joe Rogan: Triggered."
Joe Rogan em cena de seu show na Netflix 'Joe Rogan: Triggered' - Miikka Skaffari/Netflix

Até agora, algumas das respostas mais duras ao Spotify vieram de apresentadores de podcasts veiculados pelo serviço.

Na segunda-feira, os apresentadores de "Science Vs", outro podcast do Spotify, declararam no Twitter que para eles o apoio da empresa a Rogan era como "uma bofetada", e anunciaram que seu programa avaliaria uma a uma as afirmações feitas no programa de Rogan pelo médico Robert Malone, cuja entrevista no podcast em 31 de dezembro atraiu reprovação severa das autoridades de saúde.

A escritora Brené Brown, cujos programas no Spotify, entre os quais "Unlocking Us", são fortemente promovidos pela empresa, anunciou no final de semana que suspenderia o lançamento de novos podcasts "por prazo indefinido".

Pouca gente espera que grande número de músicos deixe o serviço, especialmente os artistas jovens mais famosos, tendo em vista o papel primário do Spotify na divulgação de sua música e na promoção de muitos de seus outros negócios, como as turnês.

"Seria preciso um artista jovem realmente corajoso para adotar a posição de dizer alguma coisa que pode antagonizar metade de seus fãs", disse Mark Mulligan, da Midia Research.

Um obstáculo pode ser o direito contratual dos artistas a remover sua música. As gravações deles tipicamente são controladas pelas gravadoras, que assinam acordos de licenciamento com serviços como o Spotify.

Os contratos de alguns artistas com suas gravadoras podem dar a eles o direito de remover sua música de veículos online por certos motivos, mas isso não se aplica a todos eles, disse Jeffrey Liebenson, advogado que já representou gravadoras e serviços digitais de música. E, mesmo que esses direitos sejam exercidos, um serviço pode apresentar objeções a um êxodo em massa.

"Há casos em que uma gravadora pode solicitar uma remoção se o caso tem o potencial de prejudicar sua relação com o artista", disse Liebenson. "Mas a plataforma poderia se preocupar com a possibilidade de que a gravadora esteja agindo assim não devido a problemas no relacionamento com seu artista, e sim porque está travando uma guerra contra o serviço de streaming."

Em declaração divulgada na semana passada, Young agradeceu à sua gravadora, a Reprise Records, parte do Warner Music Group, e seus editores musicais pelo apoio que deram a ele. Ele também fez um apelo para que outros artistas sigam seu exemplo, mas parecia já saber que o número dos que o acompanhariam seria pequeno.

"Sinceramente espero que outros artistas possam agir", escreveu Young. "Mas não posso ter a expectativa de que isso vá acontecer."

Tradução de Paulo Migliacci

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