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Bruce Willis, que vai se aposentar, fez brucutu com alma no cinema

Astro de Hollywood se afastará das telonas por doença, mas conseguiu criar um mito próprio em 40 anos de carreira

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São Paulo

Nesta quarta-feira, Hollywood ficou sabendo que vai perder um nobre operário. A família de Bruce Willis anunciou que ele vai se aposentar depois de receber um diagnóstico de afasia, um distúrbio de linguagem causado por um dano cerebral que afeta a capacidade comunicativa.

Nisso, mídia e fãs começam a antecipar obituários (ao menos para o cinema, onde a distância das telas é visto como um sinal do fim), relembrando quem é esse ator, que chegou a ser motorista e segurança antes de deslanchar com o sucesso da série "A Gata e o Rato", exibida entre 1985 e 1989, e se consolidou como herói em "Duro de Matar", de 1988, que ainda renderia continuações até 2013.

cena de filme
O ator Bruce Willis em cena do filme 'Duro de Matar', de 1988 - Divulgação

Seu John McClane é relembrado não só como personagem de um bom filme de ação oitentista (de um diretor, John McTiernan, celebrado ainda por "O Predador" e "A Caçada ao Outubro Vermelho"), mas também de um longa de Natal, detalhe pequeno numa trama em que um policial tenta sobreviver a uma investida terrorista.

Ainda assim, com uma "família a defender", demonstrou ter mais alma do que muitos personagens de Arnold Schwarzenegger ou Chuck Norris. E mais –que era possível cair na porrada com alguma bondade no olhar, com mais humor e maneirando nos esteroides.

E seria, em grande parte, esse papel de brucutu, ágil e carismático, que ele mais interpretaria durante os anos 1990. A partir dos anos 2000, virou um dos rostos mais conhecidos dos "Supercine" da vida até, como na última década, estrelar filmes B a rodo, com poucas exceções, que mal chegam às nossas telonas.

Alguns dos mais trabalhos recentes até se dedicaram a celebrar figuras como a dele, vide a série "Mercenários". Ao fim, não quis participar do terceiro filme, de 2014, pois estava pedindo cerca de R$ 2,3 milhões de reais por dia de gravação e acabou sendo substituído por Harrison Ford.

Mas, como Hollywood vive de mitos —e com certo afinco e popularidade seus operários podem ter chances de ouro—, Willis pôde brilhar em alguns trabalhos menos como uma máquina de matar, mas explorando o lado falível de um tipo que segue encantando multidões —do engomado Henry Cavill ao novo bombado Tom Holland.

Nessa difícil arte dos encontros entre ator e diretor, M. Night Shyamalan parece ter sido o que melhor entendeu, ou ao menos respondeu, a figura de Bruce Willis. Em retrospectiva, "O Sexto Sentido", de 1999, não deixa de ser irônico se pensarmos que é um filme sobre um psicólogo morto (atenção para o spoiler) interpretado pelo outrora policial "duro de matar".

Pouco antes, Willis chegou a viver em "Pulp Fiction: Tempo de Violência", de 1994, um pugilista perdedor que fica vulnerável e quase é estuprado com uma mordaça de BDSM antes de dar um golpe de sorte e fatiar o agressor com uma catana —no melhor da energia tarantinesca. Ainda assim, tem um final triunfante, partindo de moto com a personagem de Maria de Medeiros na garupa.

Depois, ele ainda viveria um policial de uma pequena cidade em "Moonrise Kingdom", de Wes Anderson, cujos tons pastéis combinam mais com pequenos problemas locais do que com grandes explosões. Afinal, os rebeldes aqui não passaram de crianças, e Willis faz um trabalho delicado.

Nada, porém, é comparável ao belo "Corpo Fechado", de 2000, cujo título em português transforma o poético "Unbreakable" —ou inquebrável— numa referência espírita. De fato, o filme tem lá seu lado místico e inexplicável, já que o protagonista vivido por Willis, David Dunn, é o único sobrevivente de um acidente de trem, que se descobre uma espécie de super-homem capaz de sentir o interior das pessoas e que tem como única fraqueza a água.

Nisso, Shyamalan inverte o próprio Bruce Willis mítico —ele parece ser mesmo indestrutível, ou crê ser, e esse aspecto será dilatado com seu contraponto, o fanático Elijah Price —papel de Samuel L. Jackson—, cujos ossos quebram como vidro. Por isso, vive em uma cadeira de rodas e pode se dedicar a muita leitura de gibis, além de convencer Dunn de que ele é uma espécie de deus.

Mais do que só aceitar o papel de brutamontes, Willis e seu personagem entendem ser um arquétipo. E constroem menos um "filme de super-herói" e mais um sobre eles, em que o ator até pode ser um homem comum no fundo, mas preso nas teias da ficção armadas por Price e pelo próprio Shyamalan —em última instância, de Hollywood.

Não à toa, Dunn e Price voltariam quase 20 anos depois em "Vidro", após o entreato de "Fragmentado", talvez o ápice autorreflexivo do diretor americano. Nele, somos desafiados novamente a pensar na existência de seres sobre-humanos no cruzamento entre os mistérios e as ambiguidades do cinema.

Longe da recepção unânime, o filme ao menos consegue provocar os atuais super-heróis que lotam os cinemas ao trancafiar seus personagens num hospício. E aí, justiceiros e vilões, todos se confundem entre as camadas de reviravoltas.

Agora parece ter chegado a vez de o Willis real ser golpeado por um imprevisto melancólico, justamente uma condição que afeta sua capacidade de falar, ler, escrever, enfim, de atuar. Assim, se aposentando aos 67 anos, ele parece recuar como o brucutu sensível que pôde ser nas telonas.

Mas, antes de poder descansar como "homem comum", permanece no espaço que construiu ao longo desses anos, um ícone maleável da indústria —e que vai além do que esta breve análise tateia.

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