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Cinema União Europeia

'Vitalina Varela', de Pedro Costa, expõe beleza esculpida nas trevas

Usando técnica do claro-escuro, filme sobre imigrante de Cabo Verde em Lisboa faz harmonia assombrosa entre luz e sombras

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Vitalina Varela

  • Onde Nos cinemas
  • Classificação 12 anos
  • Elenco Vitalina Varela, Ventura, Manuel Tavares Almeida
  • Produção Portugal, 2019
  • Direção Pedro Costa

O cinema de Pedro Costa desafia classificações. Seus últimos longas têm atores não profissionais que interpretam versões meio documentais, meio ficcionais deles mesmos. Não estamos bem no terreno do documentário. Mas chamar só de ficção seria impreciso. Seu cinema é de poesia, por mais batida que seja a definição, ou da ficcionalização do documentário, se preferirem.

Ventura, por exemplo, é o protagonista cabo-verdiano de "Juventude em Marcha", de 2006, e "Cavalo Dinheiro", de 2014. Em "Vitalina Varela", último longa de Costa, de 2019, Ventura retorna como um padre desiludido. Teria sido sempre um padre e não percebemos? Em "Cavalo Dinheiro", aparece pela primeira vez Vitalina Varela, a esposa cabo-verdiana de Joaquim, outro cabo-verdiano que por sua vez faz uma confissão a Ventura. Agora, Vitalina chega a Lisboa. Seu marido tinha sido enterrado há três dias.

cena de filme
A atriz Vitalina Varela em cartaz do filme 'Vitalina Varela', de Pedro Costa - Divulgação

Quando chega ao aeroporto, ela observa a pista de dentro do avião, com a porta aberta à espera de encostarem a escada. É uma imagem surreal que o cineasta coloca com grande efeito. Ela desce do avião descalça e é informada do atraso para o enterro. Seguido de um terrível "aqui em Portugal não há nada para você", que será reverberado mais tarde, quando ela encontra o padre interpretado por Ventura, num dos momentos mais fortes do filme. Padre e Vitalina, diz o primeiro, compartilham o luto. Ela perdeu o marido, ele perdeu a fé no meio da escuridão.

"Passei 40 anos esperando uma passagem de avião para Portugal. Ficarei para o resto da minha vida." Curioso como um filme de tantos silêncios tenha tantas falas marcantes. Vitalina percorre os lugares em que seu marido viveu, descobrindo seus segredos, o que ele fez durante os 25 anos de separação, seus rastros nas ruínas Fontainhas, bairro pobre de Lisboa, habitado por imigrantes e destruído pelo governo português com a transição para o euro, na virada do século 21.

Assim se fez a Lisboa dos turistas, dos mercados reformados que ganham nomes em inglês e dos bairros gentrificados com licor de ginja a mais de dois euros.

Se o cinema de Rita Azevedo Gomes, outra figura central do cinema português contemporâneo, prima por belíssimas composições e enquadramentos pictóricos, atingindo patamares poucas vezes vistos no cinema atual, a poética de Pedro Costa concentra-se na harmonia entre luz e sombra, nas chamadas composições em claro-escuro, com um uso assombrosamente dramático da luz.

As sombras dominam suas imagens, e por isso nunca fez tanto sentido o que se diz sobre a necessidade de ver seus filmes no cinema.

Pedro Costa é o cineasta das casas de pedra ou de tijolos, das Vitalinas e dos Venturas, dos cabo-verdianos nas periferias de Lisboa, de seus dialetos, de pessoas que o capitalismo empurra para os cantos, dos espelhos e dos jogos ficcionais. É também o cineasta dos silêncios, dos sussurros e dos cenários lúgubres.

Costuma-se dizer que seus filmes são sobre o 25 de abril, a chamada Revolução dos Cravos de 1974, ou suas consequências. Isto nos remete a "Nós por Cá Todos Bem", 1978, de Fernando Lopes, que em determinado momento mostra, num muro do interior português, a terrível inscrição: "O 25 de abril não chegou aqui". As guerras coloniais acabaram, mas o 25 de abril não chegou aos africanos, e principalmente aos africanos que vivem em Portugal.

Quem acredita na balela de que cinema é entretenimento vai fugir de um filme como este, ou mesmo de qualquer filme português. Mas o que é entretenimento para uns pode não ser para outros, e vice-versa.

​Um cinéfilo mais disposto a encarar o ritmo que Pedro Costa impõe, ele que, por sinal, é admirador de John Ford e do chamado cinema clássico americano, vai se entreter com a beleza das imagens esculpidas nas trevas e se encantar com a densidade marcada nos rostos de Vitalina e Ventura —nos ambientes soturnos que parecem aprisioná-los, nos movimentos lentos que refletem o peso e a dignidade dessas existências nas margens da sociedade.

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