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Alaíde Costa, aos 86, lança disco elegante que faz ponte entre gerações

Novo trabalho da única mulher do Clube da Esquina tem colaborações que vão de Emicida a Erasmo Carlos

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Lucas Nobile

O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim

Quase 70 anos separam as primeiras gravações de Alaíde Costa —um disco de 78 RPM de pouca repercussão do selo Mocambo em que ela cantava dois sambas-canção, sendo um deles de sua autoria, "Tens que Pagar", em parceria com Airton Amorim— e seu mais recente lançamento, o álbum "O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim".

Quando despontou, na segunda metade da década de 1950, Costa era apresentada pelas rádios, jornais e revistas com o slogan "a suavidade que canta". Numa época em que predominavam os vozeirões, o estilo mais contido de cantar de Alaíde Costa despertou a atenção de nomes como João Gilberto, Johnny Alf e João Donato.

Assim como eles, Costa nunca precisou gritar para transmitir sua mensagem. Hoje, aos 86 anos, em seu disco novo ela ainda mantém a mesma suavidade, sem perder a expressividade de seu canto.

A cantora Alaíde Costa, que lança “O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim”
A cantora Alaíde Costa, que lança “O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim” - Ênio Cesar/Divulgação

"O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim", lançado na semana passada nas plataformas digitais de áudio, traz uma característica marcante dos trabalhos assinados pelos produtores Marcus Preto e Emicida –a de estabelecer pontes entre diferentes gerações. Com a seguinte virtude –convidados a compor especialmente para a veterana cantora, os autores e as autoras mais novos se adaptaram com excelência ao estilo dela, e não o contrário.

Das oito faixas, sete são inéditas. Seja nas novidades, como a que abre o disco, "Turmalina Negra", de Céu e Diogo Poças, seja na única regravação, "Aos Meus Pés", de João Bosco e Francisco Bosco, —"o meu caminho eu mesma fiz/ não foi ninguém que me apontou/ eu me virei sozinha/ comi o pão todinho que o Diabo amassou"—, boa parte das canções do disco soa autobiográfica na voz da protagonista.

Incluindo o título, verso extraído de "Aurorear", primeira parceria entre Emicida e Joyce. E não é preciso de muito para entender o que os tais calos de Alaíde Costa dizem sobre ela.

Mesmo sendo a única figura feminina no histórico álbum "Clube da Esquina", obra de Milton Nascimento e Lô Borges que agora faz 50 anos, e mesmo tendo gravado discos importantes dedicados aos repertórios de Hermínio Bello de Carvalho, de Johnny Alf e do próprio Milton, Costa nunca recebeu as chaves para acessar o chamado "mainstream" da indústria fonográfica.

Ajudou a moldar um jeito novo de cantar no Brasil antes mesmo da bossa nova, mas jamais teve o mesmo reconhecimento de nomes como Sylvia Telles e Nara Leão. Expressões como "cantora colored", "escurinha" e "crioulinha" contribuíram para sublinhar o desencaixe de Costa ante os padrões impostos por uma sociedade estruturalmente racista.

Ainda hoje Alaíde Costa segue sem se dobrar aos modismos e à atual histeria das redes sociais. Dá uma aula de elegância e categoria num álbum permeado por sambas-canção, boleros e baladas.

Inaugura parcerias entre Erasmo Carlos e Tim Bernardes, em "Praga", entre ela mesma e Nando Reis, em "Tristonho" —cantando o tema universal de amores feitos e desfeitos— e entre Ivan Lins e Emicida, em "Pessoa-Ilha", canção mais politizada do disco com versos como "carros, cabos, praças/ mil soldados/ carrancudos e ocupados/ onde crime é compaixão".

Nessas e em outras faixas como o acalanto "Berceuse", composição das mais inspiradas do cancioneiro de Guilherme Arantes, e "Nenhuma Ilusão", de Fátima Guedes, o canto de Alaíde Costa tem uma imprevisibilidade que lembra o piano de Thelonious Monk. Nunca entrega a melodia logo de cara. A cada compasso, a cada sílaba bem dividida, Costa vai revelando aos poucos o encaminhamento melódico.

Em termos de sonoridade, a direção musical de Pupillo e os arranjos de Antonio Neves, Eduardo Neves, Henrique Albino e Tiquinho —com os metais muito bem distribuídos— combinam a força e a delicadeza coerentes à estética "alaideana".

Num país que nos últimos anos convive diariamente com o apagamento de sua memória cultural, "O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim" merece ser escutado por ouvintes de gerações tão diversas como as que conceberam o disco. Como poucas, a voz de Alaíde Costa carrega num só tempo o passado, o presente e o futuro.

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