Com 'astral de caramujo', João Bosco é guiado pelo violão em disco de memórias

Cantor atualiza samba-enredo de 1985 e recorda músicas com o parceiro de cinco décadas, Aldir Blanc

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São Paulo

João Bosco não conseguiu mostrar a nova versão de “Profissionalismo É Isso Aí”, mais próxima do blues, ao amigo Aldir Blanc. “Ele já tinha aprovado essa ideia de ver o ‘Profissionalismo’ em blues”, diz o cantor e compositor. “Mas não pôde ouvir essa gravação. Assim como não ouviu a [versão de] ‘Cordeiro de Nanã’. Ele tinha se mostrado muito curioso.”

Bosco lembra o escritor e compositor, seu parceiro musical por cinco décadas, com quem sua obra se confunde de muitas maneiras, que morreu depois de contrair a Covid-19 em maio. O músico chegou a adiar seu novo disco, “Abricó-de-Macaco”, em que estão as faixas que ele queria mostrar a Blanc, mas lançou o álbum —acompanhado por um registro audiovisual— no último dia 15.

O cantor João Bosco de boné olhando para microfone em estúdio
O cantor João Bosco em estúdio - Marcos Hermes/Divulgaçãp

“O Aldir era um cara que não saía, vivia em quarentena, mas cercado de netos e bisnetos. Foi uma coisa muito difícil de aceitar. Como diz o outro, a ficha ainda não caiu.”

“Profissionalismo É Isso Aí”, lançada em 1980 pela banda Black Rio, é uma das composições de Bosco e Blanc recriadas em “Abricó-de-Macaco”. Mas o disco, gravado em sua maioria no ano passado, diz Bosco, é amplo e tem “cara de nação”.

“Um resumo do momento que eu vivo, de memória pessoal e coletiva, e tudo isso se encontrando. Com os pés no chão, olhando as coisas a partir deste momento.”

Com 14 regravações e duas faixas inéditas, “Abricó-de-Macaco” traz versões renovadas de faixas próprias de Bosco, como “Mano que Zuera”, de 2017, e “Cabeça de Nêgo”, de 1986. E passa também por outros compositores, da recriação do afro-samba “Água de Beber”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, à versão elétrica de “Forró em Limoeiro”, de Jackson do Pandeiro.

“Abricó-de-Macaco”, diz Bosco, é um disco de memória. “Nunca acreditei em arte nostálgica. Acredito em memória, mas sempre olhando pra frente, com suas observações intuitivas de hoje. Atentar à memória e transformá-la. E tudo acontece de forma intuitiva, não tenho conceito racional, teórico. É como se o violão me conduzisse.”

Entre as lembranças do cantor estavam o samba-enredo “Chora, Chorões”, uma homenagem ao choro desfilada pela Estácio de Sá em 1985, e um show de Miles Davis ao qual ele assistiu no Theatro Municipal do Rio de Janeiro em maio de 1974. “Boa parte daquele repertório está nesse disco [‘Get Up With It’, de 1974] que ele dedica ao Duke Ellington, porque ele morreu na época que o Miles estava no Brasil.”

O disco de Davis e a obra de Hermeto Pascoal influenciaram “Horda”, uma das inéditas do disco. Mais agressiva, a faixa tem participação da clarinetista israelense Anat Cohen —que toca em outras músicas no álbum— e foi feita a partir do documentário “O Mês que Não Terminou”, do ano passado, que tem trilha assinada por Bosco.

“É uma música mais guerreira, um distúrbio dentro da ordem oficial”, diz, lembrando as manifestações de junho de 2013, tema do filme dirigido por Raul Mourão e Francisco, filho de Bosco e coautor de “Horda”.

A outra inédita é a faixa-título, um samba sem refrão que se desenrola como um fluxo de consciência. Ou, como diz Bosco, um “samba de carretel” —“quanto mais linha você puxa, mais samba vem”—, no estilo de “Linha de Passe”, uma das colaborações mais conhecidas dele com Blanc. “É algo característico desses sambas que fiz muito com o Aldir. Que não têm necessidade de ter uma forma, do tipo A mais B.”

Com letra de Francisco Bosco, “Abricó-de-Macaco” descreve a paisagem urbana do Rio, do futebol na areia aos graves e passinhos do funk. É a vida que existe “do firmamento ao chão”, uma ideia de abrangência que acompanha todo o disco.

O título vem de um fruto tropical, que nasce na Amazônia e corre risco de extinção. Bosco vê a árvore em praças do Rio e compara o fruto a um coco, só que com casca ainda mais grossa, que dá tanto no tronco como nos galhos.

“Em determinada estação do ano, ele se abre, e nasce ali uma flor de uma beleza e de uma exuberância muito grandes. Quando abre, e você passa perto dela, parece um milagre da natureza. Vivemos num país onde estamos sempre esperando que aconteça algo de positivo, de desenvolvimento concreto. Nossa potência e nossas possibilidades estão sempre em locais do tipo banzo, saudades do que a gente não foi ainda.”

“Mas existe uma lenda de que seremos uma nação mais humana, de que a divisão de renda vai ser melhor. Você fica esperando, do tipo 'agora vai'. E esse fruto nasce também assim —bloqueado, fechado, obscuro. Só que ele se abre e fica bonito de ver. É uma reflexão que serve como nação.”

No fluxo do violão e das memórias de Bosco, há ainda a mescla de composições próprias antigas com faixas de outros autores, como a junção de “Cordeiro de Nanã”, lançada pelos Tincoãs em 1977, e “Nação”, de Bosco e Blanc, de 1982. “Pagodespell”, faixa de 1986 escrita por Bosco, Chico Buarque e Caetano Veloso, ganha citação a “Escapulário”, música em que Caetano se apropria de um poema de Oswald de Andrade.

O processo de reunião e recriação do repertório, diz o músico, é orgânico e está inteiramente ligado ao seu instrumento favorito. Como Blanc diz no samba “Sonho de Caramujo”, Bosco sê vê como um “caramujo musical”, que vive “dentro da casca” do violão.

“O Aldir fala dele e fala de mim. A primeira parte é muito ele. ‘Entrava no livro que lia e fugia.’ Ele sempre foi assim. Uma coisa meio Dom Quixote, o cara que fica pirado com os livros, se transforma em personagens e vive aventuras.

“Depois, ‘cumpri meu astral de caramujo musical’, ‘moro na casca do meu violão’. Eu deixo o violão me conduzir, porque é ali onde moro. E acredito naquilo. Você acaba vivendo no mundo da intuição.”

Ao comentar a falta dos pêsames da Secretaria Especial da Cultura, então comandada pela atriz Regina Duarte, à família de Aldir Blanc, Bosco lembra de uma bebedeira com Zeca Pagodinho.

“Em determinado momento, alta madrugada, falei ‘Zeca, vou embora, senão não vou achar nem minha casa'. Ele disse assim —‘que é isso, cara, depois que a gente erra o prédio, qualquer andar serve’. Fiquei pensando sobre isso. Não adianta você mudar os andares. Pode trocar um ministro pelo outro, não adianta nada. A tentativa é que, em 2022, consigamos mudar de prédio. Quanto à música, seguimos cantando.”

Abricó-de-Macaco

Erramos: o texto foi alterado

O samba-enredo "Chora, Chorões" foi desfilado no Carnaval de 1985, e não de 1986, como havia sido informado. Além disso, a música "Pagodespell", lançada em 1995, na verdade, foi composta em 1986. O texto já foi corrigido.

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