Descrição de chapéu
Livros machismo

Livro dos anos 1930 é libelo contra mulheres que viviam em caixinhas

'Amai e... Não vos Multipliqueis' convida a pensar sobre dificuldades e resistências para fugir aos padrões estabelecidos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Mary del Priore

Amai e... Não vos Multipliqueis

  • Quando 1932 (primeira edição)
  • Preço R$ 74 (328 págs.)
  • Autor Maria Lacerda de Moura
  • Editora Chão

Os tempos eram difíceis e ela não foi fácil. Maria Lacerda de Moura, autora de "Amai e... Não vos Multipliqueis" se tornou professora, escritora, anarquista e feminista numa época em que as mulheres não deviam ser nada disso. Em geral, eram só "mulher de alguém" e mãe.

Mas sempre houve quem não achasse a ideia boa. Nascida a 16 de maio de 1887, em Manhuaçu, Minas Gerais, estudou e casou em Barbacena. De família de pequena classe média —o pai era funcionário de cartório, e a mãe, doceira— desde cedo se interessou pelo tema da educação feminina.

O conhecido instrumento de transformação de vidas, ela defendeu num primeiro livro –"Em Torno da Educação". Não qualquer educação. Mas uma sem dogmas, preconceitos de sexo ou classe como propunham Maria Montessori e Francisco Férrer, autores que ela admirava.

A escritora, professora, feminista e anarquista Maria Lacerda de Moura
A escritora, professora, feminista e anarquista Maria Lacerda de Moura - Arquivo Nacional/Fundo Correio de Manhã

Lacerda de Moura veio para São Paulo onde, junto com Bertha Lutz, fundou a Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher, embrião da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Ali propôs a inclusão de uma disciplina nova nas escolas, algo como a "história da mulher, sua evolução e missão social".

Mas a tradicional pauta feminista de educação para todas, a melhoria na situação da mulher casada, a igualdade no mundo do trabalho e o voto não bastavam para ela. Envolvida com o movimento operário anarquista, Lacerda de Moura lançou, em 1924, "A Mulher É uma Degenerada", texto ácido em que refuta teses sobre a inferioridade física e mental da mulher, numa época em que médicos perseguiam sua "independência". O livro foi reeditado várias vezes e ganhou a atenção da imprensa.

Capa da primeira edição de "Amai e... Não vos Multipliqueis" (1932)
Capa da primeira edição de "Amai e... Não vos Multipliqueis" (1932) - Acervo Edgard Leurenroth
Capa do livro 'Amai e Não vos Multipliqueis', da editora Chão
Capa do livro 'Amai e... Não vos Multipliqueis', da editora Chão - Divulgação

Mas havia espaço para tanta rebeldia? Sim. As grandes capitais viviam entre crises políticas e reformas urbanas. Pairava no ar um perfume de revolução nos costumes. As mulheres –não todas, é verdade– cortavam cabelos, erguiam as saias e integravam consultórios, escritórios, lojas, indústrias.

Estavam nos bondes, nas filas dos cinemas, nos "dancings". Até greves de trabalhadoras já ocorriam. Feministas? Muitas, Pagu, Gilka Machado, Leolinda Daltro e tantas outras. Lacerda de Moura seguiu publicando livros –"A Mulher na Maçonaria", entre outros– e deixou o magistério para atuar na revista Renascença, órgão da imprensa operária.

Nessa altura, Lacerda de Moura já achava que o projeto de Bertha Lutz, centrado na questão do voto, era para poucas e ricas. Ela estava preocupada em combater a hipocrisia da moral vigente. Sobretudo, a moral cristã que dava as costas às mulheres pobres. Ela se interessava por debater as relações das mulheres com seu corpo, os homens, a família e o trabalho, temas mal discutidos pelo movimento.

Divorciada, ela se mudou em 1928 para uma colônia anarquista em Guararema, na Grande São Paulo, onde viveu com André Neblind, líder perseguido pela ditadura de Getúlio Vargas. Em breve, Lacerda de Moura denunciaria a entrada do fascismo no Brasil e o movimento integralista ao qual –que decepção!— se filiou seu filho adotivo e que reunia inúmeras mulheres que criam na obediência, no casamento e no dever da maternidade.

Ao publicar "Amai e...", Lacerda de Moura já se desligara de associações feministas e anarquistas que ajudou a fundar. O livro reúne artigos publicados no jornal O Combate, donde o tom imperativo e alarmista. Seu alvo era a subserviência das mulheres que, segundo ela, viviam em caixinhas –esposa, prostituta, solteirona. Para amar e ser amada, dizia, era preciso se libertar de armadilhas castradoras.

"Só pela liberdade nos emancipamos. Emancipar-se é conhecer-se. Emancipar-se é ficar fora das leis e das convenções sociais." É fugir do "olhar dos outros", interiorizado por meio da educação e da Igreja.

Também combatia "o prejuízo da virgindade, da castidade forçada para o sexo feminino", assim como a prostituição, contrapartida para preservação da "pureza" das mocinhas casadoiras. "Uma sociedade mais justa só é possível se todos puderem se amar de forma plena, a si mesmos e aos outros."

Mas, para que esse amor fosse plural, era preciso parar de oprimir as mulheres, obrigando todas à monogamia, a casamentos sem amor, à maternidade compulsória. Em edição impecável, o livro e a autora nos convidam a pensar como as mulheres enfrentaram dificuldades e resistências para fugir aos padrões estabelecidos. O desafio continua. E, em tempos igualmente difíceis, inspiração nunca é demais!

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.