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Rachel Cusk busca o que há de essencial na experiência feminina em 'Segunda Casa'

Romance se baseia em história de mecenas que ajudou artistas a florescerem, mas nunca foi reconhecida

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São Paulo

A inquietação da canadense Rachel Cusk, de 55 anos, ao narrar a vida feminina já rendeu visitas a extremos.

A autora foi consagrada pela trilogia "Esboço". Depois do excesso de presença pessoal em "Aftermath" e "A Life’s Work", ainda inéditos no Brasil e pelos quais foi criticada, e do esvaziamento que marca a protagonista da trilogia, Cusk aposta, com o novo "Segunda Casa", em pegar emprestados os sapatos da excêntrica mecenas Mabel Dodge Luhan, personagem real que viveu de 1879 a 1962, para extrair o que há de universal na experiência feminina.

Mulher branca de cabelos lisos castanhos vista de costas com a cabeça inclinada para a esquerda com água ao fundo
Rachel Cusk, 55, no festival de literatura de Ascona, em Locarno, na Suiça, em novembro de 2021 - Divulgação

Luhan, esquecida pela história da arte americana, merece créditos por fazer um papel que, segundo Cusk, resume essa vivência. A mecenas usou a herança para ajudar artistas a florescer, mas nunca produziu arte ela mesma nem foi prestigiada. "Ela era o público e a pessoa que os reconhecia e que os queria celebrar. Nenhum fez o mesmo por ela. Isso expressa algo essencial sobre o dilema feminino."

Cusk esbarrou com a personagem ao pesquisar sobre o escritor inglês D. H. Lawrence, a quem tem como um tipo de mentor. Luhan registrou o período em que recebeu Lawrence no estado americano do Novo México no livro de memórias "Lorenzo in Taos", publicado há 90 anos.

A fotografia mostra Mabel Dodge Luhan, 1934 uma branca, mulher, bissexual, patrona americana das artes e colunista sindicalizada em frente a um pano de fundo estampado
Fotografia da mecenas de arte americana Mabel Dodge Luhan - Carl Van Vechten/Yale University Library

Dedicado à mecenas das artes, "Segunda Casa" bebe goladas do registro. "Memória e justiça se conectam profundamente na experiência de falta de poder", justifica a autora. Na edição brasileira, ela decidiu suprimir a homenagem –e o livro se sustenta firme sem a anedota biográfica.

O leitor acostumado com as afiadas divagações desapegadas de enredo de obras anteriores ganha embalos narrativos —e uma profusão de pontos de exclamação, cortesia do estilo de Luhan– com "Segunda Casa".

Narrado em primeira pessoa pela protagonista, referida apenas como "M", e endereçado a um interlocutor que conhecemos como Jeffers, o romance se passa num pântano onde a escritora de meia-idade vive com o marido Tony, num lugar e período não especificados.

capa de livro
Capa do livro 'Segunda Casa', da canadense Rachel Cusk - Divulgação

Sem o aviso da relação com o universo de Luhan, a menção de uma pandemia pode até convencer o leitor que se trata de uma mulher mais velha divagando, hoje, de forma mística e antiquada sobre arte e feminilidade. Segundo Cusk, a suspensão do tempo é deliberada.

"Acredito que uma das características da expressão literária feminina, se for honesta, é que parece que nada mudou. Você pode ler a experiência de uma mulher da Idade Média e ainda vai haver coisas que permanecem profundamente inalteradas."

Sua protagonista construiu uma segunda casa no terreno para oferecer residências artísticas, como fez Luhan. "Eu precisava de certo grau de relação, ainda que pouca, com os conceitos de arte e com as pessoas que acatam esses conceitos", diz a narradora.

Ela mira o pintor L, um homem difícil cuja obra emana uma "aura de liberdade masculina que pertence igualmente à maioria das representações do mundo e da nossa experiência humana nele, e que nós, mulheres, crescemos acostumadas a traduzir em algo que possamos reconhecer por nós mesmas".

M quer que L veja o pântano com seus olhos e registre, não só aquele espaço, mas ela, em pinturas. "Ela quer que o senso de realidade seja devolvido ou restaurado", afirma a autora. "Eu interpretei isso como a perda de definição na feminilidade das mulheres de meia-idade e a sensação de invisibilidade."

O processo de ser vista e registrada por um homem é, no livro, essencial. "Como é possível que minha vida incorpore tanto a sensibilidade masculina a ponto de eu sentir que ela é capaz de me expressar?", questiona a autora.

Cusk foi condenada por ignorar questões políticas. Se tomarmos o mote feminista da década de 1960, "o pessoal é político", ela não deixa a desejar ao pensar o lugar social da mulher –e ganha pontos por escapar da tentação das heroínas perfeitas e livres de dilemas.

M é, ao mesmo tempo, vítima —do patriarcado, da crueldade de L— e figura controladora e invasiva, que mal gera simpatia.

"Me sinto distante dos discursos sobre feminilidade", diz Cusk. "Uma grande questão para mim é 'quando você para de ser uma mulher?'. Parece, no momento, que é quando você deixa de ser autorizada a ter a voz de uma."

MEMÓRIAS AGUDAS E CRÔNICAS DE UMA UTI

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