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Cinema

Alain Resnais, que faria cem anos, continua a nos desconcertar com a obra

Cineasta expoente da nouvelle vague amava uma teia onde todos se sentiam um pouco perdidos e causou revolução

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A nouvelle vague apenas começava quando Alain Resnais deu início à sua revolução particular do cinema. Já era um documentarista importante, com mais de 20 filmes. "Toda a Memória do Mundo" e, sobretudo, "Noite e Neblina" já estavam destinados se tornar clássicos do gênero —o que de fato aconteceu.

Mas "Hiroshima Meu Amor" foi um espanto. Surgiu em 1959, como obra já madura do cineasta nascido em 3 de junho de 1922 e que agora chegaria ao centenário. Surgiu causando polêmica, desconforto e exigindo algum esforço para compreender a história da francesa que vai a Hiroshima para uma filmagem e tem um profundo caso amoroso com um jovem japonês.

Hiroshima, a cidade onde explodiu a primeira bomba atômica, era mais que um lugar: era o símbolo de uma nova e perigosa era para a humanidade. A Segunda Guerra Mundial tinha terminado há menos de 15 anos e a Guerra Fria pairava sobre o mundo como uma ameaça.

Mas e o filme? Nada disso. Lá estava a francesa (sem nome), atriz, passeando pelos museus que guardavam a memória da bomba. "Eu vi tudo em Hiroshima", dizia. "Você não viu nada de Hiroshima", respondia o japonês (sem nome).

Entre museus e conversas ia-se rompendo a cronologia. Desde Orson Welles e Rossellini, o cinema havia se transformado profundamente. E isso ainda não se havia visto: um filme que havia rompido de todo com a narrativa cronológica, em que os personagens não tinham nome, em que os diálogos não eram coloquiais e nem ditos coloquialmente. Resnais armava uma teia onde todos se sentiam um pouco perdidos. Para isso teve o auxílio de Marguerite Duras, a quem pediu uma história que falasse sobre o desastre de Hiroshima da maneira mais indireta possível.

"Hiroshima" foi apenas a primeira parte da revolução. Hoje quem vir esse filme poderá com razão pensar o que deixou os espectadores tão confusos. A narrativa não cronológica hoje está devidamente incorporada ao repertório de qualquer espectador.

A segunda parte desconserta os espectadores até hoje. "O Ano Passado em Marienbad" é apenas a história de um homem apaixonado que busca romper a resistência de sua amada. Mas quando isso aconteceu? No ano passado? Terá acontecido mesmo? Teria sido mesmo em Marienbad?

O texto de Alain Robbe-Grillet tece uma espécie de labirinto a que vem se juntar um texto poético (trata-se de um raro roteiro que pode ser lido com prazer) e um trio de atores fantástico. Robbe-Grillet nos carrega com seus travellings incisivos pelos corredores e salões desse hotel onde nos perdemos enquanto tentamos saber o que de fato acontece (ou aconteceu), quando e com quem.

O crítico José Lino Grunewald, admirador incondicional do primeiro Godard, admitiu que Resnais ia mais longe.

O problema era: como seguir com isso? Não havia mais aonde ir, podia-se concluir depois de "Muriel". Resnais seguira seu preceito de nunca escrever os roteiros, de confiar sua ideia a um escritor. Jean Cayrol, no caso. Apesar de fazer o filme em cores, com uma cenografia estilizada distante de qualquer realismo, apesar de Delphine Seyrig mostrar-se tão adorável quanto em "Marienbad", o filme não foi o sucesso esperado.

Era hora de dar razão a Eric Rohmer, cineasta e teórico da nouvelle vague, adepto do realismo estrito, para quem Resnais abria muitas portas, mas elas não davam em parte alguma.

Começava o tempo do refluxo. O belo "A Guerra Acabou" (1966) remetia à guerra da Espanha, era escrito por Jorge Semprun, sobrevivente do campo de concentração de Buchenwald, trazia grandes estrelas, como Yves Montand e a sueca Ingrid Thulin. O filme trocava as idas e vindas no tempo pelas idas e vindas de um comunista espanhol entre a França e a Espanha franquista. O conteúdo político, naquele momento, deve ter ajudado o filme a concorrer ao Oscar.

Mas o experimentalismo não estava excluído. Nem o gosto por avançar em territórios inéditos, caso da ficção científica, com "Eu te Amo Eu te Amo" (1968), um fracasso em mais ou menos todos os fronts, que afetou também a carreira de "Staviski" (1974), que para completar era um caso interno francês pouco conhecido no exterior.

Resnais volta a se impor na grande era da Gaumont, com "Providence" e, logo a seguir, "Meu Tio da América". O gosto pela experiência inédita não decaíra, o que se pode verificar no estranho "A Vida É um Romance" (1983), em que segue o destino de um castelo desde 1914, início da Primeira Guerra Mundial. O principal aqui, em todo caso, é que pela primeira vez colaborou com Sabine Azéma, que desde então se tornaria a atriz obrigatória de seus filmes e, aliás, com quem se casaria pela segunda vez, em 1998.

Desde então, as relações entre as várias artes, em particular entre o cinema e o teatro, ocuparam boa parte das preocupações formais de Resnais. "Smoking/No Smoking" (1993) é o exemplo mais radical, claro, com texto do britânico Alan Ayckbourn: o filme tem cinco horas de duração, e divide-se em duas metades interpretadas pelo mesmo casal, no mesmo cenário. Cada parte é determinada pela escolha inicial: fumar ou não fumar, daí derivando as variações.

Os vários filmes, até o final, envolvem fortemente o teatro, mas não só, como no caso de "Amores Parisienses" (1997), filme de sucesso em especial na França, de onde vinham as canções: ele fez um rapa nos prêmios César daquele ano.

Se não raro o cinema de Resnais parece próximo demais do formalismo da velha "qualité française", o gosto pela avant-garde o isola desse reduto acadêmico. Trata-se de um cineasta que trabalha em plena liberdade e invade o território da comédia romântica sem cerimônia e com muito gosto em "Ervas Daninhas" (2009), que inaugura a bela série final da carreira de Resnais.

Segue-se o que talvez se possa aproximar das obras-primas dos anos 1960, "Vocês Ainda Não Viram Nada" (2012), em que um dramaturgo (sugere-se que seja Jean Anouilh) convida os intérpretes das várias montagens de sua mais famosa peça ("Eurydice") para um encontro em sua mansão, no interior. Ele já está morto, mas cabe aos atores interagirem com o vídeo que deixou para eles.

A obra se fecha com "Amar, Beber e Cantar", em que retorna aos textos de Alan Ayckburn e à ostensiva teatralização. O filme, lançado no mesmo ano da morte de Resnais, completa uma obra complexa, inquieta, inventiva, quando não revolucionária.

É provável que José Lino Grunewald estivesse certo ao apostar na revolução formal proposta por Resnais. É quase certo que essa revolução abriu muitas portas que não davam em parte alguma, como quis Rohmer, e que a revolução de Godard fosse, a rigor, aquela que até hoje mais influenciou e transformou o cinema. O que não impede que, chegando aos 100 anos, essa obra continue a causar impacto e a desconcertar os seus espectadores: em suma, está viva.

Mostra 100 Anos de Alain Resnais

  • Quando Qui. (2), às 20h ('Hiroshima, Meu Amor'); sex. (3), às 19h ('As Estátuas Também Morrem', 'Toda a Memória do Mundo') e 20h ('Mélo'); sáb. (4), às 16h (palestra com Cristian Borges, professor da ECA/USP), 18h ('O Ano Passado em Marienbad') e 20h ('Smoking'); dom. (5), às 18h ('No Smoking'), 21h ('Guernica', 'Van Gogh', 'Paul Gauguin', 'O Canto do Estireno'); qui. (9), às 20h ('Guernica', 'Van Gogh', 'Paul Gauguin', 'O Canto do Estireno'); sex. (10), às 19h ('Muriel') e 21h ('Stavisky...'); sáb. (11), às 18h ('Amores Parisienses') e 20h30 ('Meu Tio da América'); dom. (12), às 18h ('Noite e Neblina', 'Hiroshima, Meu Amor')
  • Onde Cinemateca Brasileira (Sala Grande Otelo) - Lgo. Senador Raul Cardoso, 207, Vila Mariana
  • Preço Grátis (distribuição de ingressos uma hora antes da sessão)
  • Link: https://www.instagram.com/cinemateca.brasileira/
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