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Bolsonaro perpetua as elites escravistas de sempre, diz autor Laurentino Gomes

Escritor chega ao fim de trilogia sobre escravidão travando luta por uma segunda abolição, contra homenagens a escravocratas

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A litografia 'O Jantar', feita em 1839 por Jean-Baptiste Debret, que retrata o cotidiano escravista do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XIX

A litografia 'O Jantar', feita em 1839 por Jean-Baptiste Debret, que retrata o cotidiano escravista do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XIX Jean-Baptiste Debret/Itaú Cultural

Yasmin Santos
Rio de Janeiro

Ao escrever sobre escravidão, Laurentino Gomes assumiu um compromisso –manter o "olhar atento". Sua tarefa era conjugar passado, presente e perspectivas de um futuro constantemente negado à população negra.

Já nas primeiras páginas do terceiro volume de "Escravidão", recém-lançado pela Globo Livros, o autor confessa que tinha certa resistência a associar escravidão a genocídio até ler, com olhar atento, Abdias do Nascimento, ativista histórico do movimento negro.

O escritor Laurentino Gomes e o presidente Jair Bolsonaro
O escritor Laurentino Gomes e o presidente Jair Bolsonaro - Karime Xavier/Folhapress e Alan Santos

Em "O Genocídio do Negro Brasileiro", publicado em plena ditadura militar, Nascimento defende que genocídio se refere não só ao extermínio físico, mas também a aspectos relacionados à identidade de um povo.

"Quando o país se recusa a dar condições dignas de sobrevivência, na forma de moradia, educação, emprego, saúde, construção de memória, o resultado prático é o genocídio", afirma Gomes. "O Brasil não permite que os negros sobrevivam e prosperem."

Esse ideal genocida perpassa toda a trilogia "Escravidão". O volume inicial, lançado em 2019, parte do primeiro leilão de escravizados em Portugal, em 1444, até a morte de Zumbi dos Palmares, em 1695. O segundo livro se concentra no século 18, no auge do tráfico negreiro no Atlântico. A edição derradeira, lançada neste mês, é dedicada à Independência, em 1822, e ao movimento abolicionista.

"Procuro mostrar que houve uma resistência permanente dos africanos e dos negros brasileiros à condição de escravo. Isso nem sempre se deu na forma de rebelião, de fuga, de formação de quilombo", afirma. "A principal resistência foi encontrar espaços no sistema escravista para sobreviver, constituindo famílias, participando de irmandades religiosas, fundando terreiros de candomblé."

A narrativa vai de encontro a mitos entronizados na cultura brasileira de que a escravidão foi mais branda no Brasil. A tal da harmonia entre a casa-grande e a senzala defendida no clássico livro de Gilberto Freyre, panfleto da democracia racial.

"Esse livro ["Casa-Grande & Senzala"] traz uma certa nostalgia do período. Na prática, cativos recebiam 500 chibatadas, tinham a orelha cortada, eram torturados", diz Gomes. "A escravidão no Brasil foi tão violenta quanto em qualquer território escravista."

Em sua primeira trilogia —"1808", "1822" e "1889"—, a escravidão aparecia de forma secundária. O autor tentava entender o país a partir de seu ponto de vista burocrático. É como se primeiro quisesse falar sobre a construção de uma casa e agora, com "Escravidão", se debruçar sobre os moradores e os construtores do imóvel, "a alma brasileira", diz.

"A questão racial é central, explica tudo o que aconteceu, o que acontece hoje e provavelmente o que acontecerá no futuro", diz o escritor, para quem este é o trabalho mais importante de sua carreira. "Essa obra tem consequências políticas, tanto para o autor quanto para os leitores, porque desenvolve uma nova consciência a respeito do Brasil."

Temida pela elite agrária, a abolição não levou o Brasil à ruína, mas tampouco correspondeu às expectativas dos abolicionistas. "Depois de explorar a população negra em todos os seus aspectos, no trabalho e inclusive sexualmente, o Brasil tentou —e isso está registrado— se livrar deles, como se faz com a cana-de-açúcar: Tiram o sumo e jogam fora o bagaço."

A elite agrária, ao notar os flertes de dom Pedro 2º com o abolicionismo, começa a debandar do governo. Não à toa a monarquia desaba em 1889, um ano após a abolição. "Eles não eram nem monarquistas nem republicanos, eram escravocratas."

A segunda abolição jamais chegou. "O Brasil é um país que deu errado porque não enfrentou o legado da escravidão. Perpetuou uma ferida que poderia ter sido cicatrizada na época —e esse projeto estava delineado", afirma o autor, fazendo referência aos projetos dos quatro grandes abolicionistas brasileiros –Luiz Gama, José do Patrocínio, André Rebouças e Joaquim Nabuco– que iam da questão fundiária à educação.

"Havia a ideia de que o ‘sangue negro’ teria corrompido a índole brasileira, e não adianta dizer que isso ficou para trás", diz. "No século 19 foram plantadas as raízes da mentalidade do Estado brasileiro."

Para embranquecer o país, a aposta era a miscigenação. Diversos estudos da época estimavam que, até o final do século 20, não existiriam mais negros no Brasil. Era um projeto de Estado. O governo criou linhas de financiamento para os cafeicultores importarem brancos europeus, subsidiando suas passagens. Foi assim que os bisavós de Gomes aportaram aqui no final do século 19.

Vindo da região da Lombardia, na Itália, a família Fagnani veio substituir os ex-escravizados na colheita do café no interior de São Paulo. "Meus bisavós sofreram muito, com jornadas exaustivas de trabalho, demoraram 50 anos para conseguir comprar um pedaço de terra, mas, ainda assim, tiveram condições muito melhores do que os descendentes de escravizados", lembra o escritor.

Quando aqui chegaram, ficaram hospedados na Hospedaria dos Imigrantes, onde hoje é o Museu do Imigrante, na zona leste paulistana, depois foram morar em colônias agrícolas "que tinham o mínimo de dignidade quando comparadas às senzalas".

"Há uma dívida histórica. Mas ela não se resolve contabilmente. Primeiro porque é muito difícil de vender isso politicamente. Segundo, porque só ela não resolve a questão. Essa dívida se paga com investimento no futuro", diz Gomes. "O Brasil nunca vai ser um país inovador, que gere riquezas a partir da educação, tecnologia e ciência, enquanto continuar a desprezar a população negra."

No ano em que está prevista a revisão da Lei de Cotas, Gomes celebra a política de ação afirmativa que reserva vagas a negros em universidades federais. "É a nossa primeira medida, dentro do ambiente democrático, para enfrentar o legado da escravidão."

Argumenta, no entanto, que ela é só um primeiro passo e, sozinha, não consegue diminuir a desigualdade racial. "As cotas têm dado resultado e quem quer o seu fim são aqueles que conspiram contra a democracia, que defendem um país branco e opressor."

Segundo o autor, o governo de Jair Bolsonaro é uma representação da elite agrária do século 18, que segue à espreita. "A continuação desse governo significa uma pororoca contra os avanços que vêm desde o governo FHC, passando por Lula e Dilma, de tentar corrigir as desigualdades. Não podemos caminhar para trás."

Agora, ao andar pelas ruas, Gomes nota as inúmeras homenagens a escravocratas, muitos dos quais têm suas trajetórias esmiuçadas na trilogia, como o senador Vergueiro, que dá nome à rua da zona sul carioca. "Faz parte da estratégia genocida homenagear quem estava profundamente envolvido com o tráfico ou a posse de escravizados", conclui. "É uma forma de escrever a história, de impor uma visão."

Gomes, no entanto, não é a favor da simples remoção de homenagens. Segundo ele, essa troca é insuficiente. É preciso que a sociedade, antes, discuta o assunto. "Se a população brasileira chegar à conclusão de que é preciso mudar tudo, que se mude! Quem nós homenageamos diz sobre quem nós somos, a construção da nossa identidade."

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