Wilson das Neves ganha disco póstumo com Chico Buarque, Emicida e Seu Jorge

Zeca Pagodinho, Ney Matogrosso e Marcelo D2 são outras das participações de luxo do álbum duplo que sai agora

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retrato de homem em preto e branco dramático

O cantor e compositor Wilson das Neves Mariana Beltrame/Divulgação

Rio de Janeiro

Baterista tido por muitos como o maior da música brasileira, compositor de belezas como "O Samba É Meu Dom", cantor com domínio pleno do ritmo e da interpretação, Wilson das Neves era conhecido também por seu talento como frasista. Tinha sempre à mão uma tirada bem-humorada, um aforismo da malandragem —como "ô, sorte!", que se tornou uma espécie de assinatura.

Uma dessas pílulas de sabedoria gingada é lembrada por Alexandre Segundo, produtor que trabalhou com Neves de 2006 até a morte do baterista, em agosto de 2017, aos 81 anos, vítima de um câncer no pulmão. "‘Tudo na hora certa’, ele sempre me falava", conta Segundo. "Porque sou ansioso, quero sempre resolver as coisas na hora."

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O cantor e compositor Wilson das Neves - Mariana Beltrame/Divulgação

"Tudo na hora certa", o produtor vem repetindo para si mesmo nos últimos cinco anos, quando começou a saga de produzir um disco recheado de canções inéditas de Wilson. E a hora certa, enfim, chegou. Com produção de Jorge Helder e Kassin, o álbum duplo "Senzala e Favela" está gravado, em finalização, com previsão de lançamento em agosto, pelo selo FundiSom —nesta terça (14), será liberado nas redes o primeiro teaser do projeto.

São 18 canções, 13 delas novas, nas vozes de um elenco estelar, que mapeia um tanto dos caminhos que o baterista traçou em vida. Entre elas, estão Chico Buarque, Zeca Pagodinho, Maria Rita, Ney Matogrosso, Roberta Sá, Emicida, Fabiana Cozza, Seu Jorge, Marcelo D2, BNegão, Rodrigo Amarante e Pretinho da Serrinha. O próprio Wilson aparece cantando em três faixas, duas delas em gravações caseiras.

"Senzala e Favela" começou a nascer pelas mãos do próprio Neves. Ele tinha a ideia de fazer um álbum com o nome, extraído de uma parceria com Paulo César Pinheiro —a dupla assina quase todas as composições do projeto. O baterista chegou a montar a lista das canções, divididas entre o disco um ("Senzala") e o disco dois ("Favela"). Em grande medida, o repertório desenhado pelo artista foi respeitado.

"Wilson tinha a ideia de reconstruir a batucada da escola de samba como ele se lembrava, antes de a bateria das escolas virarem o que viraram, com várias caixas dobrando a mesma coisa", lembra Kassin. "Começamos o disco então gravando essa batucada, na qual ele tocava do jeito que era feito antigamente. Isso depois virou a base pra música ‘Se Você Não Me Levar’", diz, sobre a música que abre "Senzala", cantada pelo próprio Neves.

Originalmente, "Senzala e Favela" seria baseado em duas sonoridades bem marcadas. Metade do álbum duplo seria feito com uma big band, arranjos de metais, no formato a que Neves se habituou. A outra metade teria apenas o violão sete cordas de Thiago Delegado e a caixinha de fósforos do baterista. O projeto acabou não seguindo o padrão, mas Delegado marca presença assinando o arranjo do jongo "Rei de Oyó", cantada em dueto por Moacyr Luz e Gabriel Cavalcante.

"E a caixinha de fósforo aparece no arranjo que Amarante fez para ‘O que É Carnaval’", nota Segundo. "O curioso é que Amarante não sabia dessa história que havia lá atrás, que teria caixinha de fósforo. Wilson que deve ter soprado, a energia dele esteve presente no processo inteiro de feitura do disco."

Neves estava prestes a voltar ao estúdio em 2017. Gravaria numa segunda-feira, 28 de agosto —as datas de gravação tinham sido inclusive antecipadas em virtude do estado de saúde dele. Não houve tempo. Na sexta anterior, bastante fraco, ele avisou a Segundo: "Vou ter condições de gravar não, chama a Áurea pra cantar no meu lugar", disse, referindo-se a Áurea Martins, da qual era grande fã —ela e Chico Buarque são os únicos cantores que aparecem, cada um, em duas faixas de "Senzala e Favela".

No mesmo dia, ligou para Kassin e disse que estava indo para o hospital. "O disco vai ficar pra próxima, tenho como fazer não", insistiu, depois de o produtor ter dito que o esperaria para gravar. Na madrugada de sexta para sábado, morreu.

Ainda no velório, Chico, que gravaria com Neves naquela semana para o disco, colocou-se à disposição dos produtores para seguir no projeto. Outros artistas, como Ney Matogrosso e Emicida, sinalizaram o desejo de participar.

Começou então o périplo de Segundo para conseguir recursos para a realização do álbum. Depois de ter o projeto negado em editais e ver vários acenos de patrocínio darem n’água, em março do ano passado conseguiu o apoio da Associação Cultural Saúva, que incentiva sem fins lucrativos projetos culturais e ambientais. Reuniu-se então com Jorge Helder, Kassin, Cláudio Jorge, João Rebouças e Stephane San Juan e partiram para pôr a mão na massa.

Além dos já citados, a ficha técnica de "Senzala e Favela" inclui músicos como o baterista Andre Tandeta, o violoncelista Jaques Morelenbaum, o saxofonista Zé Carlos Bigorna, o trombonista Marlon Sette, o pianista Cristóvão Bastos e os violonistas João Lyra e Paulão Sete Cordas.

Maria Rita, que canta "Traço de Giz", conta ter ficado nervosa na gravação: "Ainda me sinto menina perto desses gigantes", diz sobre os músicos. "E é um samba difícil, de desenhos melódicos nada óbvios. Wilson tinha a coisa de fazer sambas que parecem simples, mas só até você começar a cantar. Aí vem uma pedra rolando lá de cima do morro. Acho isso incrível."

A cantora não teve a oportunidade de conviver com Neves. Mas teve com ele um encontro marcante. "A gente se trombou, literalmente, num aniversário do Arlindo Cruz, na quadra do Império Serrano. Eu estava sendo empurrada pra cá e pra lá. Ele veio falar comigo no meio da multidão e disse: ‘Toquei com sua mãe’. Mas a onda humana já me levava para longe dele. Não consegui entender o que ele falava, não consegui responder e fiquei mal com aquilo. A ficha do que ele disse só caiu no dia seguinte. Aí eu fiquei pior, porque eu jamais destrataria um griô, a velha guarda. Gravar nesse projeto pra mim é uma forma de pedir perdão pra ele. Quem sabe ele aceita?"

O disco tem diferentes arranjadores, cada um com sua assinatura própria, mas todos afinados com a atmosfera de Neves —mesmo no tempero rap de "O Dia em que o Morro Descer e Não For Carnaval", com vozes de BNegão e D2, que diz que quando foram gravar ele percebeu que ela tinha na forma e na letra uma intenção e "certa marra do rap". "Wilson passeava em todos os lugares e gerações", afirma o rapper.

Durante as gravações, Seu Jorge (que viu Neves pela primeira vez menino, nas festas na casa de sua tia, e anos depois se tornou seu amigo na Orquestra Imperial), lembrou exatamente dessa capacidade de Neves de cruzar gerações, conta. O cantor interpreta o samba buliçoso "Que Beleza de Nega", cuja malícia sedutora conversa com o existencialismo popular de "Café com Leite", cantada por Moyseis Marques, parceiro de Neves na composição —outra amostra de que o baterista dialogava naturalmente com os mais jovens.

"Ele tinha uma visão da vida muito rápida, muito malandra, muito aguçada. E tratava com leveza as dificuldades. O último verso é justamente isso: ‘No mais, qualquer abacaxi já é café com leite’", diz Moyseis.

No arranjo de "Café com Leite", Jorge Helder faz uma citação a "Café com Pão", de João Donato. Helder lembra de uma história que representa bem o humor do baterista. "Ele pediu para eu fazer um arranjo pra um choro no disco dele. Liguei pra ele e perguntei como queria. ‘Pode ser assim?’, e aí ele respondia. Então eu fazia mais uma pergunta, ‘quer uma flauta, um sete cordas?’. Depois de uma série de perguntas, ele me disse: ‘Não precisa fazer mais não, que esse arranjo aí eu já dei tanta dica que é meu’. E acabei não fazendo mesmo", recorda, rindo.

Outro arranjo de Helder no disco é de "Chefia", composição em homenagem a Chico Buarque —era assim, "chefia", que Neves chamava o autor de "Vai Passar". A gravação da voz de Wilson foi feita no celular de Segundo numa tarde em que Helder esteve na casa de Neves, na Ilha do Governador, zona norte do Rio de Janeiro, para aprender algumas inéditas do disco. "Neves sempre gostou de coisas classudas, gostava de violoncelo, cordas. Pensei então em violoncelo e piano. Queria só dois instrumentos, pra deixar muito forte o canto dele."

A voz de Neves aparece ainda em "Transitória", num dueto com Roberta Sá. "Foi um privilégio, e a voz dele me ajudou a achar o tom da interpretação", afirma a cantora. É uma fala que se repete entre muitos dos que participam do disco. "Vanguarda demais", sintetiza Moacyr Luz. "Wilson das Neves foi uma das melhores coisas que existiu no mundo do samba", crava Zeca Pagodinho, que tomou como sinal o fato de, logo antes de sair para as gravações, ter aberto seu armário e ter dado de cara com um disco do baterista.

Em setembro, haverá o show de lançamento do disco na Fundição Progresso, com Áurea Martins, Moyseis Marques e Vidal Assis passeando pelo repertório. "A ideia é ter na estreia outros convidados que participaram do disco, e depois circular com o show", adianta Segundo, que já tem planos de fazer um misto de clipe e curta-metragem para cada música com diferentes diretores e de levantar outros álbuns de Wilson. "Decupei as fitas cassete dele e cataloguei 331 melodias inéditas".

Mas isso é assunto pro futuro. "Tudo na hora certa", diria Neves.


Veja a letra de 'Chefia', composto por Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro em homenagem a Chico Buarque

Eu sou parceiro de Chico
Um grande artista, escritor
Melodista, poeta e cantor

É muito orgulhoso que fico
Mas é sem mercê, sem favor
Porque ele é um irmão
Porque tem valor
Eu sou um imperiano
E ele é um imperador

Possui liderança e chefia
Caráter, moral, bom humor
Mostra em tudo que cria
Que a obra do mestre é um primor

Em forma de samba eu mando
Pois sou seu admirador
Abraços de um rubro- negro
A um fraternal tricolor


Veja a lista de canções dos discos

'Senzala'

  1. "Se Você Não Me Levar" (Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro), Wilson das Neves
  2. "Que Beleza de Nega" (Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro), Seu Jorge
  3. "Embarcação" (Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro), Áurea Martins
  4. "Sem Porto" (Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro), Zeca Pagodinho
  5. "Senzala e Favela" (Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro), Chico Buarque e Emicida
  6. "O Dia em que o Morro Descer e Não For Carnaval" (Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro), Marcelo D2 e Bnegão
  7. "Café com Leite" (Moyseis Marques e Wilson das Neves), Moyseis Marques
  8. "Um Novo Amor Chegou" (Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro), Ney Matogrosso

'Favela'

  1. "Favela"
  2. "O que É Carnaval" (Wilson das Neves e Cláudio Jorge), Rodrigo Amarante
  3. "Samba para o João" (Wilson das Neves e Chico Buarque), Chico Buarque
  4. "Transitória" (Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro), Roberta Sá e Wilson das Neves
  5. "Vou Sair Daqui" (Wilson das Neves e Delcio Carvalho), Zé Renato
  6. "Duas Vozes" (Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro), Fabiana Cozza
  7. "Traço de Giz" (Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro), Maria Rita
  8. "Luz do Candeeiro" (Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro), Áurea Martins
  9. "Do que É Capaz o Tambor e o Agogô" (Wilson das Neves e Cláudio Jorge), Cláudio Jorge e Pretinho da Serrinha
  10. "Rei de Oyó" (Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro), Moacyr Luz e Gabriel Cavalcante
  11. "Chefia" (Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro), Wilson das Neves
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