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'Rua Guaicurus' capta vida de prostitutas em documentário ficcional

Filme de João Borges se aproxima de mulheres da vida de Belo Horizonte e questiona até onde vai a representação da realidade

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Rua Guaicurus

  • Quando Estreia nesta quinta (14)
  • Onde Nos cinemas
  • Classificação 18 anos
  • Produção Brasil, 2019
  • Direção João Borges
  • Duração 75 minutos

Comecemos pelo problema de localização. O título "Rua Guaicurus" se refere a um local de Belo Horizonte e nada tem a ver com a rua Guaicurus de São Paulo, por exemplo, na zona oeste. Pode ser que haja outras pelo Brasil, homenageando grupos indígenas pertencentes a essa família linguística.

A rua em questão, a de Belo Horizonte, é na zona da cidade. Ali a prostituição é barata, e ali o diretor e roteirista João Borges escolheu como local para sua experiência de tensionamento da dicotomia entre cinema documentário e cinema ficcional.

E o espectador pouco prevenido pode até se perder ali. Afinal, quem são essas moças? Prostitutas ou atrizes? E os homens que aparecem com elas?

Cena do filme 'Rua Guaicurus', de João Borges - Divulgação

Esse discreto enigma está no centro do filme. Isso não pode ser um documentário, no sentido clássico da palavra, na medida em que ali existe representação (mas não era assim também num filme como o "Nanook", de Flaherty, de 1922, em que o esquimó e sua família representavam os próprios papéis?). Mas também não seria exato falar em ficção, já que as questões centrais são trazidas pelas próprias moças.

A propósito, as moças. Talvez a prostituição não seja a profissão mais antiga do mundo, mas é certamente a que mais rendeu sinônimos. O número de palavras que designa uma prostituta é vasto. A maior parte delas exprime desprezo, outras são eufemismos, como profissionais do sexo ou mulheres da vida.

No caso, chamar essas pessoas de mulheres da vida talvez não seja um eufemismo. As habitantes desse hotel de curta permanência são, de um modo geral, levadas pela vida. Mais ou menos como qualquer outra pessoa. Algumas precisam do trabalho para criar um ou mais filhos; outras porque brigaram com a família. Ou, ainda, como Beth, porque gostam de ganhar dinheiro.

Beth, vale assinalar, é a mais desenvolta de todas. A melhor atriz, também. Ela se mostra capaz de explicar a natureza do trabalho a uma novata. "Seu corpo é seu patrimônio... Se ficar doente, se não trabalhar, não ganha. É assim que funciona." Bela descrição do trabalho autônomo ou, se se preferir, do precariado —ouvi Marilena Chauí usar a expressão— que substitui o proletariado no capitalismo neoliberal.

A força de trabalho é, ali, a força do corpo. A relação com os homens é tão comercial quanto a da vendedora de roupas ou do garçom do bar. Não quer dizer, inclusive, que não exista afeto. Como bem diz Beth a um cliente, ela está ali para dar prazer e receber dinheiro.

Não é o único caso interessante. Vale pensar na moça que, em pleno trabalho, recebe o companheiro, o homem de idade afável que a ajuda a criar o filho e conversa sobre os problemas da vida. O que são essas relações? Profissionais ou afetivas? Ou as duas coisas se confundem, assim como ficção e documentário?

E esses homens que aparecem, a começar desse simpático idoso? É um ator e recebe para fazer esse papel ou será mesmo o amigo-amante da mulher da vida? E, para não perder o fio, ela própria, até que ponto podemos chamar de prostituta e a partir de quando a podemos chamar de atriz? A dúvida vale também para os figurantes do filme.

As histórias de vida —e trabalho— que conhecemos a partir do filme têm interesse variado, o que é uma boa escolha. Certos fatos são bizarros —como o ator que quer ser depilado enquanto tem uma ereção—, enquanto outros são monotonamente triviais –as contas a pagar, o almoço, como tem sido o trabalho, os efeitos da crise sobre a freguesia.

As mulheres da vida são, como todos —ou quase— levadas pela vida. Se viram para sobreviver. Enfrentam perigos absurdos. Será imaginária ou real a história da mulher que, quando trabalhava em boate, foi alvejada seis vezes por um cliente? Não sabemos. Mas, em nossas vidas —ou na dela—, qual a relação entre o imaginário e a vida real? Aliás, desde quando o imaginário não faz parte da realidade?

Como se vê, as questões lançadas por João Borges em seu filme não dizem respeito apenas ao cinema. Mas, para ficar apenas no cinema, também não são novidade. O que pretendia o velho Von Stroheim quando fazia seu ator viver numa mina para poder representar o papel de um mineiro em "Ouro e Maldição"? Aproximar o máximo possível a representação e a vida, sem dúvida.

E o que pretendia Jean Renoir quando fez seus atores aprenderem a dirigir uma locomotiva antes de fazerem "A Besta Humana"? Este foi sempre o propósito do naturalismo, antes mesmo de existir cinema, aproximar a representação da realidade. Chegando mais perto de nós, o que pretendeu Abbas Kiarostami, com seus atores amadores, senão, por outras vias, chegar à realidade por meio da representação?

Esses artistas próximos do naturalismo constatam que só se pode captar a vida através da representação. É com esse tipo de procedimento que se tem notabilizado a atual escola mineira de cineastas. É a ela que se pode acrescentar agora João Borges, cujo "Rua Guaicurus" é o primeiro, original e notável trabalho em longa-metragem. Notável, embora não raro desigual. Mas uma coisa não anula a outra.

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