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'Crimes do Futuro' é belo espécime da vasta obra mutante de Cronenberg

Autor de 'Filhos do Medo' e 'Marcas da Violênca', canadense pensa o cinema como um jogo de bizarrices e transformações

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Léa Seydoux e Viggo Mortensen em cena do filme

Léa Seydoux e Viggo Mortensen em cena do filme 'Crimes of the Future', de David Cronenberg Nikos Nikolopoulos/Divulgação

"Pacientes que sofriam de condições de pele severamente patológicas induzidas por cosméticos contemporâneos" eram tratados na House of Skin, ou casa da pele, que depois passou a fazer experimentos dermatológicos.

É isso que nos informa a primeira narração de "Crimes do Futuro" —não este que está prestes a chegar aos cinemas na quinta-feira, mas o homônimo segundo longa do cineasta canadense David Cronenberg, realizado em 1970.

Isso pode nos lembrar a trama do novo filme, com o qual o cineasta volta à boa forma que não demonstrava desde "Marcas da Violência", de 2005. Mas, entre um filme e outro, existem tantas diferenças, além dos 52 anos que os separam, que a maior ligação entre eles é mesmo a assinatura.

O cineasta David Cronenberg ao lado de still do filme 'Scanners: Sua Mente Pode Destruir', de 1981, em exposição em Roma, em 2008 - Tiziana Fabi - 21.out.08/AFP

A começar pela óbvia constatação que o cinema de 1970 era muito diferente do cinema de 2022, tanto no imaginário dos cineastas quanto nas possibilidades de diálogo com o público. Mas também pela observação do que cada filme representa em sua carreira.

Num caso, o uso de atores amadores e narração como substituição dos diálogos, ausentes por falta de orçamento para o som direto. Um típico filme independente de um cineasta talentoso, mas sem os meios para provar isso, limitação que ocorre em seus quatro longas iniciais, de "Stereo", de 1969, a "Enraivecida - Na Fúria do Sexo", de 1977, por melhor que sejam. No outro, o acerto de contas com uma antiga obsessão —as deformações do corpo— presente em muitos de seus filmes.

Mas qual seria a principal marca desse diretor? Quais as recorrências estéticas ou temáticas que fariam de Cronenberg um verdadeiro autor, nos moldes do que pregava a "política dos autores", difundida nos anos 1950 pelos jovens turcos da Cahiers du Cinéma?

Dizer que é simplesmente o tema ou subtema das deformações do corpo é pouco. Talvez a obsessão com o progresso científico da medicina e as perversões da mente humana sejam temas amplos o suficiente para dar conta das variações que encontramos em obras magistrais e distintas como "Filhos do Medo", de 1979, "Scanners - Sua Mente Pode Destruir", de 1981, "Gêmeos - Mórbida Semelhança", de 1988, "Crash - Estranhos Prazeres", de 1996, "eXistenZ", de 1999, ou "Marcas da Violência", de 2005. São esses, aliás, seus maiores filmes.

Do ponto de vista estético, não há muitas recorrências de estilo em seu cinema, como podemos apontar, por exemplo, nos travellings de Stanley Kubrick ou Kenji Mizoguchi, na montagem que segue fluxos de memória em Alain Resnais, na influência da fotografia e do documentário em Agnès Varda ou mesmo no modo de filmar as paisagens e as relações humanas de um John Ford ou de um Michael Cimino.

O estilo de Cronenberg é normalmente discreto e funcional, quase como o do cinema clássico americano, de montagem e câmera invisíveis —sendo que há um trabalho magnífico, por vezes quase imperceptível para alcançar essa invisibilidade.

Muitos podem até considerar o cineasta um acadêmico, já que não há um estilo pessoal para além do campo-contracampo e uma maestria incrível no tempo de cada corte e nas escolhas de ângulos e movimentos de câmera.

É "Filhos do Medo", seu sexto longa, que promove o salto de uma direção de câmera talentosa, embora tateante, para um classicismo que permite melhor a exploração de excrescências, deformações, mutações e banhos de sangue. Como brinde, o filme tem em seu desfecho um dos melhores usos da montagem paralela no cinema de horror. Não é pouco.

Em "Marcas da Violência" nasce a parceria com Viggo Mortensen, continuada com os irregulares "Senhores do Crime", de 2006, e "Um Método Perigoso", de 2011, chegando ao novo "Crimes do Futuro", que repõe a parceria nos eixos de um bom cinema. No século 21, filmes menores completam sua filmografia –"Spider", de 2002, "Cosmopolis", de 2012, e "Mapa para as Estrelas", de 2014 —seu trabalho mais fraco, sendo até constrangedor em alguns momentos.

O recente "Crimes do Futuro" tem o inegável mérito de aparentar dois filmes semelhantes, pelo tom e pela criação de um mundo particular de bizarrices, uma espécie de trilogia informal da nova carne –"Videodrome", de 1983, e o paradigmático "eXistenZ".

O primeiro brinca com a era do videocassete e a transformação cultural que acarretou, incluindo o crescimento da pornografia e dos filmes snuff —que mostram assassinatos reais. Mais –ele já antecipa a simbiose entre a carne humana e o material sintético, também passível de transformações. É a encarnação do vídeo.

Já "eXistenZ" era o último roteiro original de Cronenberg antes de "Crimes do Futuro", o que talvez facilite a comparação entre eles, muito mais justificada que entre os dois filmes que dividem o mesmo nome. Nele também temos o clamor pela morte de uma velha ordem e um dos mais inteligentes embaralhamentos narrativos dos últimos 30 anos.

Vale mencionar ainda três filmes notáveis –"A Mosca", de 1986, seu primeiro e único blockbuster; "A Hora da Zona Morta", de 1983, uma das melhores adaptações de Stephen King; e "M. Butterfly", de 1993, que promove uma ousada e premonitória transformação sexual travestida de inocência. Cronenberg pensa o cinema como um jogo de bizarrices e transformações.

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