Site do Instituto Moreira Salles joga luz sobre o fotojornalismo brasileiro

Testemunha Ocular reúne dossiês de nomes célebres e lista profissionais que marcam a história do gênero no Brasil

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São Paulo

Muitas vezes visto como o primo pobre da fotografia, o fotojornalismo ganhou uma plataforma que pode ajudar a tirar esse estigma do gênero —ao menos no Brasil. No mês passado, o Instituto Moreira Salles lançou o site Testemunha Ocular, com fichas de dezenas de fotojornalistas e seções dedicadas a refletir sobre a produção desses profissionais, além de dossiês de seis nomes célebres da profissão.

A iniciativa, idealizada por Flávio Pinheiro, superintendente-executivo do instituto de 2008 a 2020, teve como gatilho a compra do acervo fotográfico dos Diários Associados, grupo fundado em 1924 por Assis Chateaubriand e que abarcava, entre muitos títulos, o Diário da Noite e o Jornal do Commercio.

Militares em frente ao Congresso durante votação derrotada pela emenda das Diretas, em 1985
Militares em frente ao Congresso durante votação derrotada pela emenda das Diretas, em 1985 - Orlando Brito/Divulgação

Dessa forma, a ideia era fazer do Testemunha Ocular um espaço para escoar as mais de 900 mil imagens adquiridas, mas o projeto, que nesse modelo já exigiria grande esforço, tomou proporção ainda maior.

Pinheiro, ao lado de Léo Aversa e, depois, de Mauro Ventura, reuniu fotojornalistas de diferentes gerações, de veteranos como Orlando Brito a nomes que iniciaram suas carreiras há bem menos tempo, caso de Gabriela Biló, de 33 anos, hoje neste jornal, e de Cris Mattos, que começou a trabalhar como fotógrafa em 2013.

"Estou há quase 40 anos no jornalismo e, mesmo assim, me surpreendi com a quantidade espetacular de fotojornalistas que a gente tem e eu não conhecia", afirma Ventura, que trabalhou por 14 anos no Jornal do Brasil e durante 12 anos em O Globo. "O site faz jus ao trabalho essencial desses profissionais que ajudam a entender a realidade. Mas é um trabalho cuja autoria muitas vezes permanece invisível."

Muitos conhecem, por exemplo, a foto do menino com a camisa da seleção brasileira chorando na Copa de 1982, mas poucos sabem que a imagem foi feita por Reginaldo Manente. Outros tantos se lembram do registro de um yanomami tomando uma bitoca de um beija-flor, mas são raros os que citariam Rosa Gauditano como a autora. O Testemunha Ocular, dessa forma, liga pontas por vezes abandonadas.

Nas fichas, além de uma breve descrição da trajetória dos profissionais, um mosaico de 20 fotos repassa as imagens de destaque realizadas por eles. A proposta inicial era lançar o site com 30 nomes, mas a estreia já contava com 44, e haverá mais em breve, numa "escolha feita meio no boca a boca", diz Pinheiro. "Cada fotógrafo com quem falava puxava outro, 'você não pode deixar de convidar fulano ou sicrana'."

As sicranas, porém, ainda são minoria. Entre os nomes que compõem a seção de fotógrafos cujos acervos pertencem ao IMS —Custodio Coimbra, Evandro Teixeira, Henri Ballot, José Medeiros, Luciano Carneiro e Walter Firmo—, nenhum é mulher. E, dos 44 convidados até agora, só 12 são mulheres. A seleção inclui nomes de relevo, como Adriana Zebrauskas e Marlene Bergamo, deste jornal, e deve crescer, afirma Pinheiro.

"Se tivesse que dar uma preferência nos novos convites, certamente seria às mulheres. Há preocupação com esse ponto, assim como há a preocupação em diversificar ainda mais o site regionalmente."

Outro ponto de atenção, destaca Pinheiro, cuja trajetória contempla 42 anos de jornalismo, com longa passagem por O Estado de S. Paulo, é fazer com que o site abrigue imagens feitas por quem vem das periferias, já que a profissão, em grande parte, é formada por fotógrafos de classes sociais de melhores condições econômicas —um reflexo óbvio de uma atividade que exige acesso a equipamentos caros.

Hoje, o Testemunha Ocular reúne dois exemplos –Renan Benedito, de Salvador, e Júlio César, de São Paulo. Enquanto o primeiro registra o cotidiano de crianças de favelas da capital baiana, numa toada um tanto diferente de registros ligados ao noticiário, o segundo documenta protestos antirracistas.

"A miséria não tem nome. Você vê a foto de um menino dormindo na rua e não sabe quem ele é nem o que que aconteceu depois", diz Pinheiro. "Quero mostrar imagens feitas por moradores da periferia, já que o fotojornalismo, muitas vezes, como em operações policiais, mostra a perspectiva do invasor, não a do invadido. Mas não podem ser só fotos de pobreza, porque isso alimenta o estigma do que é representado."

Como projeto que estreou sem um formato fechado e com horizonte contínuo de ampliação, o Testemunha Ocular ainda deve receber os portfólios de nomes que tiveram uma produção híbrida, navegando pelo fotojornalismo e, às vezes, mais centrada em retratos e produções documentais.

Maureen Bisilliat e David Drew Zingg já estão no radar, e Sebastião Salgado, o fotógrafo brasileiro mais conhecido mundialmente, pode integrar o site no futuro, diz Pinheiro. "O site privilegiou os que tiveram longo vínculo com o fotojornalismo ou ainda são atuantes. Nos primeiros anos de sua vida profissional, Salgado foi fotojornalista em tempo integral e depois passou a se dedicar a uma documentação importante, mas mais autoral. Será, porém, muito bom o ter mais para frente entre os convidados."

Mais para frente o site também deve abrigar uma seção dedicada a fotografia contemporânea, baseada no momento do noticiário. Tanto Pinheiro quanto Ventura mencionam como exemplo a foto que Lynsey Addario fez, para o New York Times, da família morta nos arredores de Kiev, durante a Guerra da Ucrânia.

Hoje, o Testemunha Ocular tem outros quatro segmentos –"Foto Histórica", de nome autoexplicativo, "Relance", com bastidores de uma imagem célebre, "Vida Longa", com a trajetória de nomes consagrados, e "Imagem Pensada", com a contextualização histórica de registros que carregam muitos significados.

"Estamos vivendo uma banalização da imagem. O Orlando Brito falava 'hoje existe muita imagem e pouca fotografia, todo mundo tem um celular, todo mundo fotografa tudo em qualquer lugar, depois algumas delas são postadas, e a maioria, esquecida'", afirma Ventura. "O Custodio Coimbra diz que o fotojornalismo sempre foi tratado como um primo pobre da fotografia, e esse site ajuda a mostrar que não é bem assim."

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