"Língua Brasileira", o novo álbum de Tom Zé, traz uma utopia abrindo e outra fechando um repertório unificado pelo tema da identidade linguística nacional.
A primeira dessas utopias, "Hy-Brasil Terra sem Mal", tem origem celta e se perde nas brumas do passado, enquanto a segunda, "Os Clarins da Coragem", encerra o disco e aponta para fora dele, extraindo arrepios marciais da esperança de que "uma geração com ternura/ se eduque em firmeza e doçura". Entre uma utopia e outra, a constatação dura e realista de que o Brasil, onde a população "elege carrascos letais", é um país "que até hoje não há".
Mas será que não há mesmo? Um desmentido a tanta desolação cívica –que o Brasil bolsonarista tem feito por merecer, aliás– é o próprio "Língua Brasileira", álbum conceitual brilhante que está entre os melhores trabalhos da carreira de Tom Zé.
Aos 85 anos, o artista que mais se manteve fiel aos princípios tropicalistas de experimentação, antropofagia, alegria e humor colhe os frutos artísticos dessa coerência num disco que prova a cada faixa, contracanto, interjeição e gemido que o Brasil há, sim. Se não houvesse, não haveria Tom Zé.
A pandemia contribuiu para isso. O álbum nasceu da costela de um trabalho anterior do artista baiano –no disco "Imprensa Cantada", de 2003, a faixa "Língua Brasileira" chamou a atenção do diretor de teatro Felipe Hirsch.
Aquele fado sobre os navegadores portugueses que se lançaram ao mar para desvendar novos mundos tinha versos belíssimos ("com seu candeeiro/ todo marinheiro/ caça continentes") e uma compreensão correta –o contrário de purista– do resultado cultural da aventura –"Babel das línguas em pleno cio".
Com o auxílio de mais uma ou outra canção, parecia haver ali um bom ponto de partida para um espetáculo teatral sobre a história da língua brasileira, essa mistura rica, impura por definição, de português antigo com línguas indígenas e africanas, entre outros sabores menos dominantes.
Contudo, logo veio a distopia virótica de 2020. Impedido a princípio de ganhar o mundo, o projeto "Língua Brasileira" começou a fermentar e crescer. Sob a coordenação do tradutor e professor Caetano Galindo, convidado por Hirsch para ser o "dramaturgista" da peça, um time de cerca de duas dezenas de linguistas e pesquisadores de vários países se envolveu no trabalho.
Entre estes, estavam algumas das maiores autoridades em estudos de línguas do país, como Eduardo Navarro, especialista em tupi, e Yeda Pessoa de Castro, papisa das línguas africanas.
Esse rico caldo de cultura parece ter feito bem a Tom Zé, dando foco e balizas conceituais a um temperamento ultracriativo, mas tendente à dispersão. Quando a peça de Hirsch e do coletivo Ultralíricos finalmente estreou, em janeiro deste ano, no Sesc Consolação, o compositor baiano tinha completado uma espécie de ópera-rock tropicalista –ou coisa parecida. Inteira e emocionante.
O álbum é o subproduto mais direto, mas não o único, do projeto liderado por Hirsch, que assina sua produção ao lado de Daniel Ganjaman. As pesquisas de Galindo sobre a árvore genealógica do português brasileiro desde as raízes protoindo-europeias renderam o livro "Latim em Pó", pequena joia de divulgação linguística que tem lançamento marcado para o fim deste ano.
Hirsch assinou a direção artística dos eventos comemorativos do dia da língua no Museu da Língua Portuguesa, em maio, e sobre essa experiência está finalizando o documentário "A Nossa Pátria Está Onde Somos Amados".
A alta voltagem da pesquisa envolvida no projeto não dá a "Língua Brasileira" nenhum travo de disco-tese, o que seria chato. Contra isso, escolhas estéticas à parte, o próprio temperamento de criança eterna de Tom Zé já seria antídoto suficiente.
A história que ele conta ao longo de 11 faixas é uma festa de signos dançantes, uma orgia lúdica de mitos e contramitos, uma comédia rasgada que se deixa atravessar por pontadas de dor, mas sem perder a ternura jamais.
O vovô latim comparece na brejeira "Pompeia – Piche no Muro Nu". A cultura indígena atravessa faixas, enquanto um samba-enredo lisérgico, "A Língua Prova Que", reconta, ao longo de quase dez minutos, toda uma cosmogonia iorubá para concluir que a língua é ambivalente, pois "dá infinita unidade, constrói a humanidade" e "tem seu lado mau, calunia, desonra, debocha, esculacha".
Nem nosso fascínio cafona pelo inglês escapa da zoação. "Pago em dólar/ canto em inglês/ mas vamos agora/ português", ele canta em "Metro Guide". Obra-prima é uma palavra gasta, mas convém resgatar o termo.
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