Descrição de chapéu

Daniel Lannes revira a história em mostra que vai do motel ao museu

Retrospectiva do artista no Paço Imperial revê episódios brutais do Brasil à luz de galãs de novela e delírios da cultura pop

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Todo quadro é um campo de choques, ou ringue que é também uma jaula.

Daniel Lannes mostra essa sua ideia de pintura nas telas monumentais que agora ocupam uma ala do Paço Imperial, no centro do Rio de Janeiro. O velho palácio onde viveram os imperadores do Brasil funciona como a moldura máxima a reger outras molduras, a dos quadros, a dos quadros dentro dos quadros e as elipses em revolta em cada obra.

Explico. Na primeira delas, um autorretrato, o artista aparece de costas para uma pintura no Museu Nacional de Belas Artes, não muito longe dali. A tela atrás dele o enquadra como um personagem desterrado, à parte da ação, e ele nos olha do lado de fora do quadro —o autor enredado encara o seu público na vida real.

Obra de Daniel Lannes em mostra em cartaz no Paço Imperial, no Rio de Janeiro
Obra de Daniel Lannes em mostra em cartaz no Paço Imperial, no Rio de Janeiro - Divulgação

Num efeito de espelhamento, a tela do outro lado da galeria é uma releitura de Lannes dos "Bandeirantes", de Henrique Bernardelli, o mesmo quadro do final do século 19 que aparece atrás do artista na primeira pintura da exposição atual. A diferença é que, nas mãos do novo autor, as cores ganham uma vibração ímpar, tudo se torna mais faiscante, em ebulição.

É a mesma força do turbilhão de azuis espessos como petróleo contornado por uma moldura rosa-choque noutra tela. No miolo da composição, um lampejo esbranquiçado denuncia uma presença engolida pela arquitetura —Lannes conta ter se retratado ali deitado na cama de um motel refletido no espelho preso no teto, daí o espaço dividido com a amante, como a tela, ser também o território de um conflito a quente.

Obra de Daniel Lannes em mostra em cartaz no Paço Imperial no Rio de Janeiro, tela realizada a partir de still do filme 'A Viagem de Pedro', de Laís Bodanzky, feito por Fábio Braga - Divulgação

Motel e museu não estão distantes na lógica das obras desse artista de Niterói, no Rio de Janeiro, agora radicado em São Paulo.

Um dos pintores mais relevantes de sua geração, Lannes, hoje com 41 anos, construiu ao longo das últimas décadas um universo visual que transita entre a história da pintura, em especial o registro edulcorado que fez da violência do Brasil um paraíso tropical na nossa arte, e a cultura pop, das "tchutchucas" dos bailes funk às vedetes dos velhos shows de calouros e estrelas das telenovelas.

O choque entre esses universos mais amalgamados que cindidos, da sacanagem que alicerça um falso decoro, fica mais nítido que nunca na retrospectiva agora em cartaz, a maior mostra de sua carreira.

Lá está dom Pedro 1º não como o monarca de testa avantajada tal qual ficou gravado na iconografia dos pintores da corte, mas sim na pele do ator Cauã Reymond, galã máximo dos folhetins da Globo. Lannes partiu de cenas do filme recém-lançado de Laís Bodanzky, "A Viagem de Pedro", para montar uma terceira cena.

Na mostra, um dom Pedro versão Cauã Reymond de perfil encara outro visto de frente refletido num espelho ao lado. Lannes rebaixa o "star power" do ator para valorizar o obstáculo, a moldura do espelho que duplica a moldura do quadro.

No reflexo, seu retratado se aproxima do borrão, do vulto, enquanto o limite entre carne real e carne refletida é o ponto luminoso da composição, o choque em primeiro plano a despeito da beleza física que não corresponde à anatomia do imperador.

Lannes realiza nesse sentido operação semelhante ao que artistas a serviço da construção de um imaginário nacional fizeram desde os primórdios. A realidade brutal da escravidão e da matança de indígenas que se transformava em idílios de bons selvagens e bandeirantes heroicos lembra a sua cirurgia plástica de dom Pedro 1º com verniz pop.

Obra de Daniel Lannes em mostra em cartaz no Paço Imperial no Rio de Janeiro, tela realizada a partir de still do filme 'A Viagem de Pedro', de Laís Bodanzky, feito por Fábio Braga - Divulgação

O enquadramento da realidade como encenação, a denúncia desarmada de um estado de autoengano permanente que parece sublinhar a estética nacional, serve de espinha dorsal da obra do artista.

É uma reação acalorada ao que a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, que organiza a mostra, chama de "contra-história", a ideia de recriar o "passado sob o signo da concórdia e da harmonia" que sempre regeu representações do país ao longo dos séculos.

Lannes então leva esse atrito entre fato e fantasia para o divã —literalmente. Numa das telas, Freud aparece ouvindo as lamúrias de um dom Pedro 2º reduzido a um vulto vermelho berrante, a cor da monarquia que parece nunca ter caído muito bem ao imperador.

Os contornos da cena são radioativos, com figuras construídas por uma luminosidade que vaza entre as frestas. Lannes destaca ali o contraste entre dois mundos, consciente e inconsciente, verdadeiro e inventado, num cenário que treme sem disfarçar o aspecto frágil de mise-en-scène, um arranjo irreal deixado para se corrigir só na pós-produção.

A mesma dessintonia borra, apaga, distorce e descolore o rosto dos membros da família imperial retratados noutra tela, num cenário burguês que poderia ser de um teleteatro.

Lannes também abusa desse efeito de corrosão da história —suas telas quase sempre se ancoram no choque entre violentos arroubos gestuais e áreas mais rarefeitas de tinta escorrida— para reinventar o rumo de narrativas viciadas.

No caldo tóxico de um Brasil polarizado pré-eleições e às vésperas da celebração do bicentenário de sua independência, o artista vira do avesso a famosa tela de Pedro Américo que retrata o grito às tais margens plácidas do Ipiranga.

Seu remix de "Independência ou Morte" traz uma figura popular, só em silhueta, para o primeiro plano, à frente do cavalo garboso do monarca.

Seria o fantasma do povo ausente diante de um projeto de poder, já que as pinceladas apartam dom Pedro do chão numa grande borrasca, seu rosto desfocado como um televisor fora do ar. Lannes denuncia uma história imaginada, cada vez mais sequestrada, que se perde na vertigem.

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