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Entenda como Bernardine Evaristo ganha o mundo com livros sem se curvar a regras

Britânica segue 'Garota, Mulher, Outras' com manifesto autobiográfico sobre uma criatividade que não aceita amarras

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pintura de mulher negra com cabelo afro vestida com camisa rosa e paletó vinho

Ilustração de Panmela Castro para capa da autobiografia de Bernardine Evaristo, 'Manifesto' Panmela Castro/Divulgação

São Paulo

Quando finalmente permitiram que a adolescente Bernardine Evaristo passasse a escolher suas próprias roupas no colégio, ela se jogou com tudo. Sua marca registrada era um casacão com suéter e cachecol, tudo de tricô multicolorido, acompanhado de saia jeans, sapatos brancos e uma boina vermelha pendendo sobre o cabelo afro.

A mãe de uma amiga certa vez a aconselhou a ser menos excêntrica. Chamando atenção daquele jeito, ela poderia ser alvo de racistas. Evaristo só deu risada. "Não ia me diminuir —me tornar invisível— a fim de tentar viver uma vida livre de riscos."

A anedota funciona para ilustrar toda a carreira de uma escritora que, como anuncia um recente perfil na revista New Yorker, acabou conquistando a literatura britânica.

Filha de um metalúrgico nigeriano negro e uma professora britânica branca, Evaristo explorou da dramaturgia à pesquisa acadêmica, do romance à poesia de guerrilha, numa trajetória quase anárquica que terminou por subjugar, livro após livro, a crítica e o público ao seu estilo tão particular.

Tudo culminou três anos atrás, quando a autora se tornou a primeira mulher negra a vencer o Booker, prêmio mais importante de seu idioma, pelo arrebatador "Garota, Mulher, Outras".

"Hoje sinto que não represento só a mim mesma, não posso mais ter aquelas reações de joelhada no estômago de quando era mais nova", diz a escritora de 63 anos, confortável num sofá estampado, em entrevista por vídeo. "De repente as pessoas passaram a escutar com muita agudeza a tudo o que eu digo, o que me pôs num estado de hipervigilância."

Na sequência de seu maior sucesso, Evaristo lança agora "Manifesto - Sobre Nunca Desistir", um livro de memórias que quer pegar na mão de artistas jovens e afoitos para mostrar como a resiliência é vital. Resumida por ela, a obra é "sobre como minha vida moldou minha criatividade e como a criatividade moldou minha vida".

"Definitivamente encontrei a minha voz na casa dos 20 anos como uma mulher preta politizada. Mas acho que o processo de escrever ficção é diferente do ativismo raivoso que me abastecia naquele momento, entende? Você precisa pensar nas complexidades da vida ao escrever personagens. Sinto que deixei de atirar granadas verbais em tudo."

O depoimento não está fora de lugar. "Manifesto" é um livro de maturidade que fascina ao mostrar como o olhar de Evaristo foi ganhando camadas com o tempo. E o próprio "Garota, Mulher, Outras", única de suas ficções publicada no Brasil, coroa esse movimento ao se dividir em 12 narrativas protagonizadas por mulheres negras e uma pessoa não binária —uma ode poderosa à multiplicidade humana.

Muito diferente de quando, num episódio de sua juventude recontado no livro, Evaristo teve surtos de autocensura ao elaborar "Lara", romance dos anos 1990 sobre suas origens familiares.

"Cometi o absurdo de hesitar diante da ideia de ficcionalizar os membros brancos de minha família", escreve Evaristo, que até ali tinha se concentrado em suas raízes africanas. Quando seguiu adiante e decidiu escrever mesmo assim, reparou que "o único obstáculo havia sido a política boba e limitadora" dentro de sua cabeça.

A vontade de se livrar de quaisquer amarras é marca da vida e da literatura de Evaristo, que saiu das franjas ignoradas até por pequenas editoras para se tornar epicentro de um terremoto literário.

"Garota, Mulher, Outras" é escrito com liberdade invejável, fatiado em trechos que se equilibram entre verso e prosa, mergulhados numa oralidade que torna a leitura fluida e acessível. Evaristo chama esse estilo de "ficção de fusão" —e uma cena contida em "Manifesto", ainda da época de "Lara", elucida o processo por trás disso.

"Como construí a história a partir de pequenos blocos de poemas, ela se tornou mais administrável", anota ela, "ao passo que o número gigantesco de palavras de um romance em prosa havia me intimidado e sobrecarregado a ponto de sentir que estava me afogando nele".

homem negro de chapéu e terno, em foto antiga
O avô paterno de Bernardine Evaristo, Gregorio, fotografado na Nigéria - Divulgação

A primeira versão de "Lara", que havia tomado três anos de trabalho, foi inteira para o lixo. Evaristo não se abalou. "Para mim, o processo criativo é um experimento —tentativa e erro—, uma viagem rumo ao desconhecido que nos leva a novas descobertas."

A vida pessoal da autora também parece toda voltada a desafogar sua criação. A britânica criou grupos de teatro experimental só de mulheres negras, subiu aos palcos como atriz, recusou empregos e viajou para diversos países.

No outro lado da moeda, se mudou incontáveis vezes de apartamento, se desesperou achando que nunca ia ter sucesso e viveu situações de abuso e violência psicológica. A mais marcante delas foi com outra mulher —apelidada no livro de Dominatrix Mental.

"Minha relação com ela foi uma lição definitiva de como me permiti ser controlada por outra pessoa e perdi a mim mesma", diz, sobre uma namorada 20 anos mais velha que primeiro se apropriou de seus poemas e depois passou a desdenhar da qualidade deles. "Levei cinco anos para me libertar, mas aprendi a nunca mais cair nessa armadilha, e nunca o fiz."

Evaristo é casada há décadas com um homem, David, e ao longo de suas memórias nunca se define como bissexual. No lugar, escreve "minha identidade lésbica era o recheio de um sanduíche heterossexual".

Outra cena marcante no livro é quando Evaristo percebe na infância que, mesmo sendo filha de pais de raças distintas, nunca seria percebida como branca. E isso numa época em que, segundo ela, "o conceito de ‘negro britânico’ era considerado uma contradição em termos".

O avô paterno da escritora, aliás, se chamava Gregorio e se mudou do Brasil para Lagos, na Nigéria, quando a escravidão foi abolida por aqui. Mas essas são basicamente todas as informações que ela tem sobre o antepassado morto antes de seu pai nascer —além de uma fotografia.

Mesmo construindo sua carreira num mercado estruturado pelo racismo, é notável como Evaristo aborda a raça muito mais como libertação que aprisionamento em sua arte. E parece reflexiva quando ouve esse comentário.

"Sabe, escrever me enraizou como uma pessoa de múltiplas identidades, e ninguém pode tirar isso de mim. Antes de escrever ‘Lara’, eu era suscetível às opiniões dos outros sobre minha identidade miscigenada. Mas passei a entender que minha raça é algo que me enriqueceu —e continuará me enriquecendo— com uma reserva infinita de histórias e culturas em que me inspirar."

No final da entrevista, ao ser lembrada da história de adolescência em que ela riu ao ouvir a sugestão de que fosse menos excêntrica, Evaristo sorri de novo e em seguida franze as sobrancelhas. "Sabe, eu realmente não gosto que me digam o que fazer."

Manifesto - Sobre Nunca Desistir

  • Quando Lançamento em 9/9
  • Preço R$ 69,90 (232 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Bernardine Evaristo
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Camila von Holdefer
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