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Entenda por que o sexo tem sumido do cinema e refletido a nova libido da geração Z

Cenas picantes ficam menos frequentes e levantam debate sobre assexualidade, objetificação e puritanismo nas telas

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Fotografia de Fe Avila Reprodução

Walter Porto
Walter Porto

Repórter e colunista de livros da Folha

São Paulo

Sexo é um assunto que ainda deixa todo mundo à flor da pele, impregnando o ar de uma excitação misturada com tabu de maneira que parece que nunca vai mudar.

Veja só um tuíte que deixou muita gente eriçada há algumas semanas. "Eu apoio 100% a criação de um botão 'pular cena de sexo' em todos os streamings no estilo daquele de 'pular abertura'", disse o autor identificado apenas como Tiago.

Bastou. "Isso mostra como essa geração é puritana e não sabe lidar com a sexualidade", diziam uns. "Nem todo mundo enxerga sexo do mesmo jeito e é preciso respeitar", rebatiam outros. "Isso é só uma piada e não significa nada", gritaram ainda outros. Por aí vai.

A princípio, soa esquisito que uma fala que sugere desdém ou desconforto com sexo alcance repercussão em 2022. Mas a reação de choro e ranger de dentes, ainda que não seja tão rara no Twitter, indica que de fato se tocou num nervo, o que abre margem para discutirmos uma tendência real e virginal no cinema.

Tem ficado cada vez mais raro ver gente ficar nua e transar na tela grande. Como já argumentou um ensaio no jornal The Washington Post de antes da pandemia, "cenas de sexo bem concebidas são capazes de produzir um frisson espontâneo tão catártico —e gratificante— quanto uma boa gargalhada ou choro". "E, agora, isso praticamente acabou."

Será que o público não quer mais ver cenas assim, como o caso do tuiteiro anônimo, ou artistas e produtores as deixaram de lado? Quem ficou mais casto —se é que alguém ficou?

Para começar a responder, é preciso reconhecer que a geração Z, essa que tem hoje até 27 anos, de fato transa menos que suas predecessoras. É o que admite sem pudor a professora Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade da Universidade de São Paulo.

Segundo um levantamento feito por ela em 2016, cerca de 2,5% dos homens e 7,5% das mulheres brasileiras não fazem sexo e não se ressentem disso —ou seja, não são considerados disfuncionais. Isso tem a ver, em parte, com a diminuição do contato pele a pele entre os jovens.

"É uma geração que aderiu tanto ao celular que acabou substituindo sexo como diversão por joguinhos, influenciadores. Assim, mostram menos iniciativa de procurar outras pessoas, só o fazem quando já estão estimuladas sexualmente por elas."

Recorrem mais à autoestimulação, portanto —e não tem absolutamente nada de errado com se masturbar, como destaca a professora, mas a atividade solitária não cria experiência para o momento da sintonia erótica com o outro. "Essas pessoas podem então se sentir inábeis, falhas, e assim se voltarem de novo à atividade reclusa de autoerotização, porque é mais recompensadora."

Como nada é simples, todo esse movimento acontece simultâneo a uma maior aceitação, dentro dessa mesma faixa etária, de modelos mais plurais de exercer sua sexualidade. É o que aponta o psicanalista Pedro Ambra, autor do recente "O Ser Sexual e Seus Outros".

"Algo que era inconcebível nos anos 1990, como ter um casal de meninos ou meninas na escola, hoje é comum. Existem outras possibilidades de viver a sexualidade florescendo. Falo também de práticas BDSM, poliamor, bissexualidade."

Dentro dessa diversidade , a letra A da sigla LGBTQIA+ precisa ser negritada. "Há agora a politização de algo que antes era estigmatizado —as pessoas assexuais, que não têm nesse um ponto central de suas vidas e querem ter esse direito respeitado."

Ambra também sugere olhar a experiência erótica da geração Z com matizes, evitando a análise "no atacado". "É preciso ampliar o escopo do que é sexualidade. Talvez o coito entre menino e menina tenha diminuído, mas se pensarmos em produção de nudes, em redes como OnlyFans, se abre um campo que é muito mais intenso nesta geração."

A maneira como nos relacionamos se reflete na cultura, que tanto influencia como é influenciada pelo nosso comportamento, lembra a pesquisadora Carmita Abdo. Pense no filme "Ela", fábula de Spike Jonze sobre um homem apaixonado pela voz de um sistema virtual —tinha ares de absurdo quando estreou, em 2013, e hoje soa quase premonitória de relações que existem mais na nuvem que na concretude.

Não faz muito tempo que a juvenil geração Z começou a entender qual é a sua relação com o sexo e como querem ser estimulados. "Às vezes achamos, ingenuamente, que há uma progressão linear do que a sociedade considera legítimo que seja mostrado. Mas não é assim", diz Esther Hamburger, professora do curso de audiovisual da Universidade de São Paulo.

A impressão da pesquisadora é que esse universo pictórico foi se fechando ao longo das décadas. Puxando pela memória, ela aponta que, durante um bom tempo, figuraram entre as maiores bilheterias do cinema nacional dois filmes nos quais Sônia Braga exibia o máximo de sua sensualidade —"A Dama do Lotação" e "Dona Flor e Seus Dois Maridos".

A evolução histórica do país também salta aos olhos de Ambra. O Brasil dos anos 1980 e 1990, na sua leitura, estava mais confortável para discutir sexo aos quatro ventos, por hipóteses que ele elenca nos dedos.

Primeiro, o movimento de libertação de um país sufocado por 21 anos de ditadura, cuja abertura serviu para desopilar toda uma nação. Não que antes disso não se falasse de sacanagem, mas a redemocratização foi uma época em que "ninguém queria se associar ao careta, ao conservador", diz o psicólogo. (Hoje, a coisa mudou um pouco de figura.)

Uma segunda razão foi a epidemia de Aids, que obrigou o país a ter uma conversa franca consigo mesmo sobre como ter relações seguras —ficou claro para os agentes de saúde que não adiantava pregar abstinência e, para recomendar o uso de camisinha, era preciso tirar algum estigma do sexo.

Ou seja, havia todo um caldo cultural favorável a botar a boca no trombone. Tudo isso junto, porém, representa só um dos lados da questão.

Em paralelo, é preciso observar como foi evoluindo a indústria do cinema —que teve um marco cultural recente e incontornável no MeToo.

Originado como um grito de basta a abusos seriais de poderosos de Hollywood, o movimento se desdobrou em demandas por maior controle feminino tanto do dinheiro como da criação cinematográfica, jogando os holofotes em quem detinha o olhar por trás da câmera. Spoiler —quase sempre um homem.

"Talvez o desconforto com cenas de sexo hoje não seja com o conteúdo, mas a forma como elas são realizadas", sugere Isabel Wittmann, crítica de cinema com doutorado na Universidade de São Paulo e fundadora do Feito por Elas, site especializado na cinematografia de mulheres.

"A heteronormatividade, o olhar masculino e a objetificação dos corpos afetam como LGBTs e mulheres se relacionam com o filme. Cinemas feministas e queer, por outro lado, possibilitam experiências diferentes no consumo de imagens de nudez."

É fácil demais dizer que o cinema ficou careta por causa das feministas. "Será que a única forma de realizar uma cena de sexo é tirando a autonomia da atriz e fazendo com que ela passe por situações vexatórias?", rebate a pesquisadora. "Que outros tipos de sexualidade são possíveis?"

O exemplo que vem primeiro à cabeça de Wittmann é "Retrato de uma Jovem em Chamas", em que Céline Sciamma filma uma cena de alta voltagem erótica que explora a axila de uma das protagonistas. E lembra que em "Me Chame pelo Seu Nome", de Luca Guadagnino, o desejo do jovem vivido por Timothée Chalamet, homossexual em descoberta, se concentra num pêssego maduro.

A bem da verdade, é preciso dizer que o sexo jamais saiu de pauta em cinemas dissidentes, de autor, desses que são prestigiados em festivais.

Só para lembrar um caso brasileiro, o curta "Uma Paciência Selvagem me Trouxe Até Aqui", de Érica Sarmet, navega com sensibilidade visceral as relações entre mulheres lésbicas de diferentes gerações —o que levou a jovem diretora a sair premiada do badalado Festival de Sundance.

Agora pense no cinema de massas, que reflete os ventos do mercado e aquilo que o público está disposto a pagar para assistir em peso.

A Marvel, maior fábrica de blockbusters do momento, causou um rebuliço no ano passado ao anunciar que "Eternos" seria seu primeiro filme com sexo. O que se viu na tela, no entanto, foi uma manifestação de sexualidade "implícita e sanitizada, sem desejo", nas palavras de Wittmann, a crítica de cinema.

Compare com os anos 1990, quando "Titanic" se tornou a então maior bilheteria da história desvelando o corpo nu de Kate Winslet num romance tórrido com Leonardo DiCaprio. Época também em que Paul Verhoeven transformava seus filmes atravessados pelo tesão em arrasa-quarteirões, como "Instinto Selvagem" e "O Vingador do Futuro".

Hoje, Verhoeven é um cineasta de nicho. No penúltimo Festival de Cannes, quando apresentou o pequeno e desvairado "Benedetta", consultaram sua opinião sobre a nudez estar se tornando mal vista no cinema.

"No geral, quando as pessoas fazem sexo, elas tiram a roupa", respondeu ele com naturalidade. "É muito estranho que nesse período de puritanismo seja normal mostrar violência, assassinatos horríveis, explosões e só o sexo ser questionado", disse alguns meses depois a este jornal.

Nada disso impede críticas à maneira como Verhoeven retrata as mulheres em seus filmes —uma das maiores ressalvas feitas a "Benedetta" foi quanto à babação sobre a nudez onipresente das duas protagonistas, freiras que descobrem uma atração mútua usando objetos religiosos para se estimularem.

Mas ele não é o único cineasta a manifestar um desconforto assim. A atriz e diretora Olivia Wilde comentou em entrevista recente que foi obrigada a tirar partes picantes do trailer de seu próximo filme, "Não se Preocupe, Querida", que foi exibido no Festival de Veneza e estreia neste mês no circuito.

"Ainda vivemos em uma sociedade muito puritana", disse ela. "Acho que a falta de erotismo no cinema americano é algo novo. E, quando falamos em prazer feminino, é algo que não vemos a não ser que estejamos tratando de um cinema queer."

Além dos filmes autorais, como lembrou Wilde, as explorações mais sofisticadas da sexualidade vicejam em algumas séries de TV de grife —a HBO, por exemplo, ao buscar padrão ouro para suas produções, sempre achou que devia incluir na conta uma liberdade maior para a nudez.

Um punhado dos melhores roteiros televisivos atuais em torno desses assuntos é voltado, curiosamente, à geração Z. Sucessos incontestes como "Euphoria" e "Sex Education" não só mostram corpos nus a rodo como buscam amadurecer discussões sobre a intimidade e a diversidade sexual e de gênero.

Retrocedendo alguns anos, "Game of Thrones" talvez seja o exemplo mais gritante de série que abusou de gente pelada e cenas de estupro —tanto que os responsáveis por sua sucessora, a nova "A Casa do Dragão", ostentam que vão tentar pegar um pouco mais leve.

Foi um incômodo generalizado, que nos faz voltar ao imaginário botão "pular cena de sexo". É claro que a questão muda de figura quando se trata de violência sexual, mas será que toda cena de nudez precisa de uma justificativa particularmente sólida para aparecer numa narrativa?

Segundo Wittmann, a crítica, a resposta é não. "Trabalhar com a nudez é trabalhar com a essência do ser humano. O corpo é a ferramenta por excelência de atrizes e atores."

Há que se ponderar, porém, que há formas e formas de esses corpos serem retratados. "O corpo nu não é necessariamente um objeto. Pensar dessa forma tira a agência desse corpo, tira a possibilidade de ele querer estar nu e desejar ser olhado. Assumir que toda nudez é objetificada é um julgamento moral."

O imaginário libidinoso, afinal, tem que ser cada vez mais livre de amarras, porque tesão não combina bem com limites. A questão é que passamos por tempos conturbados e castradores, em especial o Brasil sob um governo "antissexual", como define o psicólogo Pedro Ambra.

Na visão de Esther Hamburger, a professora de audiovisual, o cinema nacional tem vivido um momento menos criativo que reativo. Mas a tendência é que isso mude, "à medida que nos vemos diante do desafio de inventar novas formas para o mundo, e o desejo é parte disso".

A professora se interrompe ao fim da conversa com o repórter para notar que tem visto muitos cadáveres de mulheres na televisão, desde séries detetivescas até fantasias como "The Handmaid's Tale". "Ali o sexo passa a ser uma tortura. O corpo feminino muitas vezes encarnou o desejo, e é muito significativo que tenha aparecido tantas vezes morto."

É reflexo de uma era que tem sido muito mais distópica que utópica, afirma Hamburger. "Se não formos capazes de imaginar qual mundo queremos, não vamos ser capazes de criar nada melhor."

Libido é, antes de tudo, energia de vida. Que ela esteja minguando de modo coletivo pode indicar uma geração desmotivada, desiludida —ou simplesmente a manutenção sólida de uma barreira moral que sempre esteve aí, mais ou menos transponível dependendo da época.

Faz séculos que a liberdade sexual é massacrada por proibicionismos, e desfazer dogmas patriarcais pode se parecer com um trabalho de Sísifo. Mesmo quem se acredita progressista, às vezes, teve o inconsciente tão nutrido por discursos conservadores que nem reparam que suas raízes continuam ali.

Desmontar esse quebra-cabeça pode ser estranho, desconfortável, atemorizante. "A pessoa pode até se colocar como desconstruída na rede social", afirma Ambra. "Mas a verdade é que lidar com a sexualidade sempre foi difícil."

Sem dúvida é muito mais fácil apertar um botão e pular toda essa discussão. Mas quem faz isso, bem, não sabe o que está perdendo.

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