Descrição de chapéu
Cinema

Godard foi moderno ao recolher cacos artísticos para construir nova obra

Muitos tentaram imitar, mas isso tendia à paródia ou à homenagem explícita, quando não ao constrangimento

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Em "Jean-Luc Selon Luc", o pequeno e singelo curta que o crítico e cineasta francês Luc Moullet fez para seu grande amigo Jean-Luc Godard, morto nesta terça-feira (13) aos 91 anos, na verdade um extra de DVD, Moullet nos informa que Jean-Luc Godard nunca lia um livro inteiro. Ele pegava um livro na estante, lia um pedaço e o colocava de volta, tirando outro para ler também um pedaço, e continuava com outros livros.

Assim ele faz suas conexões de pensamento, aproveitando-se de cacos de outros autores, acrescentando, obviamente, suas próprias ideias no processo.

O diretor Jean-Luc Godard durante o Festival de Cannes em 1988 - AFP

Esse método, que muitos podem considerar caótico, era perfeito para um gênio como Godard. Seu cinema se alimenta de cacos desde seu primeiro longa, "Acossado", de 1960, repleto de ideias vindas do visionamento de outros filmes, principalmente do cinema B americano, mas não só.

Seus textos críticos dos anos 1950 já manifestavam esse desejo pelo fragmentado, pelas ideias que se completam ou se digladiam, jamais em textos confusos, mas sempre com o impulso de nos fazer pensar.

A estratégia pode ser notada mais explicitamente em todo o Godard dos anos 1980 em diante, notadamente em seu monumental "Histoire(s) du Cinéma", minissérie realizada entre 1988 e 1998.

Como o próprio nome diz, são "Histórias do Cinema", mas que não expostas didaticamente, ou melhor, elas têm a didática godardiana. Cacos de filmes, imagens sobrepostas, por vezes em três ou quatro camadas, com inscrições em fonte alta e ruídos de máquina de escrever ou de projetor de películas, provocando um choque de ideias nem sempre convergentes.

Até por isso há uma clara continuidade entre sua atividade crítica e sua prática cinematográfica. Ele mesmo dizia que aprendeu a fazer filmes vendo outros filmes e refletindo sobre eles. O melhor aprendizado vinha da crítica, pois a crítica vê o cinema da mesma forma que os cineastas.

Godard era o grande cineasta do embate, das forças cinematográficas diversas, que "imitava o cinema americano", como dizia Jean Douchet, e remetia ao Renoir dos anos 1930 e aos cineastas soviéticos. Ao mesmo tempo, inventava uma nova forma cinematográfica fundada em procedimentos já realizados no passado —quebras de eixo, faux raccord, ou falsa ligação, cortes secos, dissociação entre áudio e imagem—, mas nunca de forma tão agressiva.

"Existem nove faux raccords em 'Acossado'. O mesmo número que tinha em 'Arsenal', de Dovjenko." Ao associar seu primeiro longa a um filme de 30 anos antes, Godard assumia que não havia inventado nada e ao mesmo tempo que sabia o que estava fazendo. Respondia assim aos críticos conservadores que o acusavam de não saber filmar.

O período áureo da nouvelle vague, entre 1959 e 1963, fase mais conhecida e reconhecida de sua carreira, que culmina em outro monumento —senão no tamanho, certamente na grandeza da poesia—, chamado "O Desprezo", de 1963, passou a se tornar cada vez mais político, inserindo em seus filmes muito de crítica social e pequenos manifestos revolucionários, em que o ponto de virada parece ser "O Demônio das Onze Horas", de 1965, talvez mais conhecido pelo título original, "Pierrot le Fou".

A intensidade da politização levará ao essencial "A Chinesa", 1967, que antecipa a fase dita maoísta, e ao genial "Weekend à Francesa", também de 1967, uma despedida da nouvelle vague. Levará também à experiência com o grupo Dziga Vertov, retomada do maoísmo em que realiza filmes codirigidos por Jean-Pierra Gorin. Dessa fase, são marcantes "O Vento do Leste", de 1970, e "Tudo Vai Bem", de 1972.

No restante dos anos 1970, o percurso de Godard segue em paralelo com o da revista que o revelou, a Cahiers du Cinéma. Enquanto esta radicalizava em textos políticos e filosóficos, deixando de lado, por muitas vezes, o próprio cinema, Godard se refugiou no vídeo, acreditando que a nova tecnologia proporcionava mais possibilidades de experimentação.

Na volta ao cinema, com "Salve-se Quem Puder - A Vida", de 1980, se inspira no que realizou em vídeo para experimentar também com a câmera lenta, às vezes tão lenta que nos mostra a mentira essencial do cinema: não são imagens em movimento, são imagens fixas que nos dão a ilusão de movimento.

Começa então o Godard que vai desmontar o cinema, ou a ideia que se tinha do cinema. Vai dissecar suas engrenagens, pensar nas possibilidades escondidas numa imagem, mas também na palavra, pois palavra também é movimento, como nos ensinou o mestre português Manoel de Oliveira, com o qual Godard tinha muito em comum.

Obras magistrais se sucedem: "Paixão", de 1982, "Carmem de Godard", de 1983, "Eu Vos Saúdo Maria", de 1985, "Nouvelle Vague", de 1990, filme no qual encontra outro gigante, Alain Delon, "JLG por JLG - Autorretrato de Dezembro", de 1994, "Elogio ao Amor", de 2001, e "Filme Socialismo", de 2010, entre outros longas e curtas, por vezes menos geniais, embora igualmente instigantes.

Seu último longa, curiosamente, tem o título autoexplicativo: "Imagem e Palavra", no original, "O Livro de Imagem". Realizado em 2018, consegue o feito de remeter ao "História(s) do Cinema" e ao mesmo tempo a um possível cinema futuro. Se é que haverá futuro com a morte desse gênio.

Foi justamente pela prática em recolher cacos artísticos para construir uma nova obra, um novo pensamento, que Godard foi o último cineasta realmente moderno. Muitos tentaram imitá-lo, mas a imitação tendia à paródia ou à homenagem explícita, quando não ao constrangimento.

Tanto se falou nas últimas décadas sobre a morte do cinema. Com a morte de Godard, esse pensamento começa a fazer mais sentido.

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