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Cinema

Como a morte de Jean-Luc Godard fez o cinema encolher e perder a força

Cineasta se radicalizou, mas ao mesmo tempo se assumiu como personagem da sociedade do espetáculo que atacava

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Amir Labaki

Jean-Luc Godard, morto nesta terça-feira, aos 91 anos, se dedicou a expandir o cinema para além de sua tradicional estrutura de entretenimento industrial. Ele se iniciou retrabalhando os gêneros clássicos que dissecara como jovem crítico, do policial em "Acossado", de 1960, ao road movie em "Week-End à Francesa", de 1967.

As revoltas de 1968 aceleraram o curto-circuito. Primeiro, o cinema militante coletivo substitui, por um período, a produção autoral —"Cinétracts", de 1968, "As Lutas Ideológicas na Itália", de 1971.

O cineasta Jean-Luc Godard no Festival de Cannes de 1985
O cineasta Jean-Luc Godard no Festival de Cannes de 1985 - Dominique Faget e Ralph Gatti/AFP

Logo abraça pioneiramente o vídeo como formato para reflexão audiovisual, da mídia —"Six Fois Deux", de 1976. O retorno ao longa-metragem, simultâneo à constante experimentação já com o ensaísmo no formato curto —"Puissance de la Parole", de 1988—, o leva à implosão da narrativa da ficção tradicional, apoiado por intérpretes célebres, de Isabelle Huppert —em "Salve-se Quem Puder (A Vida)", de 1980— a Alain Delon —em "Nouvelle Vague", de 1990.

O vetor ensaístico afasta progressivamente seu cinema da ficção rumo ao documentário. Godard firma radicalmente a plasticidade do meio cinematográfico, em diálogo constante das outras artes, como pintura, literatura e música, com o próprio cinema —à frente a série "História(s) do Cinema", de 1989 a 1999—, e com a filosofia e o jornalismo —"Filme Socialismo", "Adeus à Linguagem", "Imagem e Palavra".

Companheiro de viagem da nouvelle vague, ao lado de ex-colegas de crítica na Cahiers du Cinéma, como Claude Chabrol, Jacques Rivette, Eric Rohmer e François Truffaut, Godard é contudo mais próximo de reinventores incansáveis do cinema como o italiano Roberto Rossellini e o francês Chris Marker. Como eles, cumpre a cada nova obra a tarefa de pôr em crise tanto o próprio filme quanto o mundo que aborda.

A mutação do cinema de forma de contar histórias a instrumento de reflexão, marcadamente político, e reeducação —da visão e da audição— não se faria sem um natural e voluntário afastamento do grande público.

Godard bancou a radicalização, ao mesmo tempo em que se assumia como um personagem ele próprio da sociedade do espetáculo que desconstruía e atacava, um gênio da autopromoção da própria obra como talvez apenas Alfred Hitchcock antes o fora.

Com a sua morte, perdendo uma das inteligências mais agudas dedicadas ao cinema, voltamos à programação habitual. Em plena tempestade, a bússola quebrou.

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