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Cinema

Mulheres têm relação de fascínio e revolta com machismo de Godard

Principal decepção de espectadoras do cineasta franco-suíço está na maneira como ele filmou figuras femininas

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Que relação estabelecer com a obra e com o personagem Jean-Luc Godard? Para mulheres que pesquisam –e amam– o cinema, é difícil separar o fascínio pelos aspectos mais revolucionários de sua obra, que existe, evidentemente, da decepção, em maior ou menor grau, a depender do período de sua extensa filmografia –ou do grau de deboche de suas declarações.

O diretor Jean-Luc Godard em imagem de maio de 1987
O diretor Jean-Luc Godard em imagem de maio de 1987 - AFP

Terei sempre ressalvas na identificação com as posturas políticas que o cineasta, morto nesta terça-feira (13) aos 91 anos, defendeu e viveu. Afinal, como não se incomodar com as relações que se estabelecem em torno das personagens femininas de Godard depois de percorrer os estudos feministas do cinema? Como não se ofender com sua visão parcial da história do cinema? Como não se revoltar com seu machismo?

Comecemos pelo fascínio. Num século que já não é mais o nosso, falava-se da manipulação que o cinema e o audiovisual exerciam e de como o espectador, passivo, era vulnerável a acreditar nas ilusões vistas na tela.

Godard, ao investir em falsos raccords e saltos na montagem de "Acossado" (1959) ou em "O Demônio das Onze Horas" (1965), chamava a atenção, por meio da descontinuidade evidente entre um plano e outro, para a artificialidade do cinema.

Isso sem falar nas discussões sobre o processo de realização incluídas no corte final, como em "O Desprezo" (1963) e "Passion" (1982), que têm como tema, no fundo, as hesitações e a dor envolvidas na própria criação artística.

Depois de seus filmes, o cinema não pôde mais continuar a ser visto como janela aberta para o mundo: é sempre fruto do trabalho de um autor e de sua equipe. Escancarar essa artificialidade constitui um golpe e tanto nos pretensos poderes de manipulação.

Não tenho, portanto, dúvidas ao afirmar que a experiência do cinema de Godard é libertadora para espectadores e espectadoras. Mas não da mesma maneira.

O primeiro ponto que decepciona mais de uma espectadora de Godard está na maneira de filmar as mulheres. O modo como apontava a câmera para jovens estrelas como Brigitte Bardot e Anna Karina é quase caricatura do prazer visual teorizado pelos estudos feministas do cinema desde Laura Mulvey —que apontam o olhar masculino e a objetificação dos corpos femininos.

Felizmente podemos ver suas personagens femininas com "olhar opositor" teorizado por bell hooks, que nomeia o incômodo e a violência da representação.

Minha relação com Godard é ambivalente. Não consigo ouvir sem desgosto algumas de suas máximas, como a de que para que exista filme bastam uma garota e uma arma. Numa entrevista de 1965, ele explica que um diretor de empresa não pode pedir a qualquer mulher bonita que passe em seu escritório no dia seguinte. "Charlie Chaplin, Clouzot e eu mesmo podemos fazer isso normalmente, com ou sem segundas intenções."

Em 2012, Anna Karina esteve no Brasil para uma homenagem e pude entrevistá-la. Ela tinha 18 anos quando conheceu o cineasta, que era dez anos mais velho. Recusou o papel que ele lhe ofereceu em "Acossado", após tê-la visto em um anúncio de sabonete.

Quando os dois trabalharam juntos pela primeira vez, nas filmagens de "O Pequeno Soldado", ela me disse que havia uma intensa troca de olhares, "mas ninguém ousava dar o primeiro passo". Até que ela recebeu um bilhete do cineasta: "Eu te amo. Me encontre no café de la Paix, à meia-noite".

Enquanto namoravam, Godard costumava desaparecer por dias, e ela contou-me das longas esperas por um telefonema ou um "pneumático", tipo de telegrama. Ainda assim, quando perguntei-lhe qual era o sentimento que ela tinha por Godard naquele momento, respondeu: "Jean-Luc ainda faz parte de minha paisagem, mas já não faço mais parte da dele".

Acredito que o Godard das últimas fases deve muito mais a Anne-Marie Miéville do que costuma ser reconhecido. Também cineasta, ela elaborou ao lado dele os mais ousados trabalhos, como a série de entrevistas para a televisão "Seis Vezes Dois: Sobre e sob a Comunicação" (1976) e um projeto de cinema nacional para Moçambique, jamais concluído, chamado de "Norte contra Sul: Nascimento (da Imagem) de uma Nação".

Com a Sonimage, produtora pilotada pela dupla, Miéville e Godard colocaram em prática a produção de imagens politicamente, com independência e autonomia. As imagens da mesa de montagem que aparecem em "História(s) do Dinema" (1988-1998) e muitos dos filmes subsequentes são o símbolo dessa casa-usina do cinema, às margens do lago Léman.

É dali, para mim, que surge a contribuição mais valiosa de Miéville e Godard: a afirmação de que é possível pensar com as imagens –e não apenas sobre elas. Mais ainda: a afirmação de que as imagens de cinema, retomadas em vídeo, pensam e pensam o próprio cinema, revelando sentidos ocultos e expondo suas contradições.

Claro que, na tela, as imagens dele –a fumaça de seu charuto, suas mãos e sua voz– prevalecem sobre as dela. Nem é preciso dizer que as histórias godardianas do cinema são sobretudo masculinas, brancas e eurocentradas.

Gosto, ainda assim, da maneira artesanal como esse pensamento era construído, como pôde ser visto na exposição-ruína "Voyage(s) en Utopie" (2006), no centro Pompidou, que se apresentava como maquete da mostra desejada.

As histórias de sua montagem são histórias de amor e dor, em meio a brigas intermináveis com a curadoria e a instituição. Amor e dor, duas palavras que talvez resumam a relação que tenho com o legado de Godard. Ele segue me incomodando. E eu continuo exibindo seus filmes em minhas aulas.

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