Descrição de chapéu Cinema Festival de Cannes

Jean-Luc Godard destilou ira sobre americanos no filme 'Elogio ao Amor'

Cineasta foi ao Festival de Cannes de 2001 exibir longa-metragem que usa o amor como pano de fundo para polêmicas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Cannes (França)

Jean-Luc Godard, morto nesta terça-feira (13), aos 91 anos, revolucionou a indústria do cinema. Um dos maiores nomes da nouvelle vague, Godard ficou conhecido por fazer filmes que influenciaram e atravessaram gerações de cineastas, entre eles "Elogio ao Amor", exibido no Festival de Cannes em 2001. A Folha esteve presente na estreia. Relembre a seguir.

Deus fez de novo. A suposta ode ao amor que Jean-Luc Godard apresentou ontem no Festival de Cannes é, na verdade, um libelo contra os que ignoram a história, personificados no filme pelos americanos, o cinema de Hollywood e, de quebra, Steven Spielberg, principalmente seu "A Lista de Schindler".

Cena do filme 'Elogio ao Amor', do cineasta Jean-Luc Godard - Divulgação

O filme em questão é "Éloge de l'Amour", ou "Elogio ao Amor", exibido na competição oficial, um dos mais aguardados títulos da mostra de cinema, quando menos porque estava sendo anunciado como a volta do franco-suíço de 70 anos aos bons tempos. Os tempos do inventivo "Acossado", de 1960, que ajudou a inaugurar a nouvelle vague, ou do polêmico "Je Vous Salue Marie", de 1980, que fez parte até da história recente da democracia no Brasil.

Godard o define como "uma ópera ou um filme" e diz que retrata quatro estações de uma história de amor —encontro, paixão física, separação e reconciliação— pelo ponto de vista de três casais: jovem, adulto e velho. Mas "Elogio ao Amor" é mais do que isso, e o amor, só um pano de fundo para o cineasta desfilar seu ideário particular, polêmico e, às vezes, um pouco envelhecido.

O filme tem uma parte em preto e branco, que se passa nos dias de hoje em Paris, onde Godard não filmava faz tempo, e outra de um colorido saturado propositalmente, de dois anos antes.

Na parte final, um jovem diretor parece estar testando atores e procurando locações para filmar uma ópera. Ao mesmo tempo, tenta reconquistar um amor perdido. Na parte inicial, o mesmo diretor viaja o país pesquisando a ligação da Resistência francesa com o cristianismo para uma cantata em homenagem à pensadora Simone Weil (1909-1943). No caminho, encontra um dos heróis do movimento dos anos 1940, que negocia com a empresa de Spielberg a venda de sua história e a de sua mulher para virar um filme. É aí que conhece a neta dos dois, por quem se apaixona.

A primeira parte é menos linear e mais cinema falado, no bom sentido. Cada sequência é anunciada pelas frases "do amor", "de qualquer coisa" (como complementos da frase "o elogio") ou ambas juntas. A câmera está sempre parada, sem travellings, sem close-ups. Os atores entram e saem de foco ou têm as cabeças cortadas quando se levantam.

Sempre que há um diálogo, Godard mostra o contraponto de quem ouve, nunca o agente em si, e a voz em off. É assim que vemos um sujeito lendo um livro em branco e alguém perguntando: "Você prefere o cinema, o teatro, a literatura ou a ópera?". A literatura, responde uma menina, depois de pensar um pouco.

A literatura parece responder também Godard: a maior parte das falas do filme virá de livros que o diretor admira, principalmente os do ensaísta romeno Emile Cioran (1911-1995), mas também de revistas e jornais. Seu método de composição é ir anotando num bloquinho frases soltas que se encaixem no tema que ele pretende tratar e depois transformar isso num roteiro.

Assim, ouvem-se personagens dizendo coisas como "Eu me preocupo se meu cigarro vai durar até a noite, meus cadarços até amanhã e meu fôlego até a semana que vem" (um velho) ou "Os americanos estão por todos os lugares, não? E quem se lembra da Resistência do Vietnã?" (uma empregada vietnamita; domésticas são recente obsessão do diretor).

Sim, os americanos estão por toda a parte. Não é diferente no filme de Godard, principalmente na segunda parte. Começa com a autodefinicão do povo: americano. "Mas de onde?", pergunta a neta. "Por acaso os brasileiros também não são americanos?" Da América do Norte. "Mas os mexicanos também não são americanos do norte?", continua ela. OK, dos Estados Unidos. "Quais Estados unidos? Os Estados brasileiros também são unidos, assim como os mexicanos." Que país é esse que nem sequer tem um nome?

E nem sequer tem uma história. "Eles vêm até aqui comprar a nossa, porque eles não têm nenhuma", diz a neta, a respeito do filme a ser produzido por Spielberg. "Steven Spielberg... A viúva de Schindler passa fome até hoje na Argentina!" O estranho, diz Godard, não é que a história, com agá maiúsculo, tenha sido substituída pela tecnologia, mas sim que a política tenha sido trocada pelo evangelismo.

Sobra até para as irmãs Wachowski. Na primeira referência, dois cartazes aparecem lado a lado, "Pickpocket", a obra-prima de Robert Bresson de 1959, e "Matrix", filme que reinventou a ficção científica no cinema no final dos anos 1990. O mundo de Godard não vê lugar para os dois filmes. O cinema adolescente de Hollywood seria o "batedor de carteiras" (pickpocket) do cinema de verdade, o de Bresson, de Godard e outros poucos.

Para não ter dúvida de que não se trata de uma homenagem ao filme estrelado por Keanu Reeves, mais tarde duas crianças batem na porta da casa dos heróis com um abaixo-assinado. A petição: que "Matrix" seja dublado em bretão. A justificativa para a ira de Jean-Luc Godard em relação a certo tipo de cinema norte-americano, dos americanos do Norte, dos Estados unidos do lado norte da América, pode estar no próprio "Elogio ao Amor", na fala de um dos personagens: "Ação e reação, o casal mais antigo da história".

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.