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Mónica Ojeda reinventa terror feminino e 'vagina dentada' em 'Mandíbula'

Em obra com destreza literária, equatoriana mostra sequestro de uma aluna por sua professora

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Lívia Prado

Historiadora e tradutora, tem mestrado em estudos latino-americanos

Mandíbula

  • Preço R$ 69,80 (304 págs.); R$ 48,90 (ebook)
  • Autoria Mónica Ojeda
  • Editora Autêntica Contemporânea
  • Tradução Silvia Massimini Felix

Carlos Drummond de Andrade definiu o medo como "nosso pai e nosso companheiro". Mónica Ojeda, no entanto, flexiona o medo no feminino. Os homens foram desterrados de "Mandíbula", romance da escritora equatoriana traduzido ao português por Silvia Massimini Felix. Nele, o medo é mãe e companheira.

Como em um filme B, a ação se inicia com uma aparente cena de donzela em apuros. Despertando amarrada a uma cadeira em um lugar desconhecido, a adolescente Fernanda se descobre sequestrada por Miss Clara, sua professora de língua e literatura. À insólita constatação se segue a reconstrução dos fatos por meio de um mergulho na psique pantanosa das protagonistas.

Capa do livro "Mandíbula", de Mónica Ojeda
Detalhe da capa do livro 'Mandíbula', de Mónica Ojeda - Divulgação

Entremeada por referências à cultura pop e à literatura de terror, a escrita hábil e vertiginosa de Ojeda nos deixa tão atados ao romance quanto Fernanda à sua cadeira. Como a arma que Miss Clara mantém sobre a mesa, tudo nele parece a ponto de explodir —os vulcões que vigiam a cabana do sequestro, a violência dos corpos adolescentes, a vida interior das personagens.

Com densidade quase psicanalítica, em "Mandíbula" a alteridade é o caminho para o eu. Fernanda e Annelise, sua melhor amiga, desejam ser gêmeas siamesas; Miss Clara antropofagiza a mãe, emulando suas roupas, trejeitos e profissão. A relação mãe-filha encontra seu duplo na relação professora-aluna. Como uma boneca russa diante de um espelho, uma mulher dá origem à outra, sucessiva e simultaneamente.

As simetrias forjadas subvertem a autoridade da mãe sobre a filha ou da professora sobre a aluna. Amigas, mães, filhas, professoras e alunas se entredevoram. A violência entretecida nas relações íntimas é sintetizada pela imagem da mãe crocodilo que carrega os filhotes na mandíbula.

Narrados com saltos temporais e por diversas vozes, os fatos anteriores ao sequestro se centram em um colégio de elite filiado à Opus Dei e exclusivo para garotas. Nele, as amigas lideradas por Fernanda e Annelise articulam de maneira mais ou menos consciente as ordens do natural, antinatural e sobrenatural.

A natureza expansiva da puberdade se rebela contra o rigor do colégio. Para escapar dele, passam a praticar exercícios de suplício físico e psicológico em um edifício abandonado, onde o recurso ao sobrenatural dá sentido a seus violentos jogos e coesão ao grupo, entre histórias de terror e o culto a um deus particular.

Suas explorações parecem simbolicamente filiadas às histórias de "vagina dentada", mas, à diferença das lendas que alertavam homens sobre o perigo de mulheres desconhecidas, a imagem aqui se refere ao autoconhecimento feminino. Annelise atribui a menstruação a seu "útero carnívoro". A beleza é manifestação do terrível; desejo e violência são a mesma pulsão.

As raras personagens masculinas são meros recursos cenográficos. A busca de afirmação e fascínio pelo grotesco das protagonistas fagocita qualquer interesse pelo sexo oposto. No relato das sessões de análise de Fernanda, por exemplo, as intervenções do psicanalista aparecem em branco, o que acaba por fazer delas monólogos da paciente.

Também próximo ao fluxo de pensamento aparece um dos momentos mais brilhantes do livro. Em um ensaio entregue a Miss Clara, Annelise atribui o medo que a professora sente de suas alunas à indefinição vital da adolescência, que pode tomar rumos insuspeitos. Relaciona essa amorfia à cor branca, terrível porque está sempre a ponto de ser manchada. Assim como as adolescentes.

É certo que tudo em "Mandíbula" está a um passo da erupção. No que parece um desafio à célebre advertência de Tchekhov, Ojeda põe uma arma de fogo no primeiro ato e não a dispara no seguinte. Manter teso o fio da narrativa com uma lógica distinta requer uma destreza literária pouco comum. Felizmente, é esse o caso de Mónica Ojeda.

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