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Como Carol Bensimon brilha com personagens fujões que exploram sua sexualidade

Escritora vai à Flip lançar 'Diorama', sobre uma taxidermista forçada a confrontar o passado violento de sua família

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mulher atrás de box de chuveiro turvo

Obra da artista plástica Gretta Sarfaty Divulgação

São Paulo

O trabalho do taxidermista, na linguagem dos leigos e dos poetas, é manter a ilusão de vida em animais mortos.

Quando viajar para países longínquos era algo impraticável, reconstruções obsessivas de habitats naturais eram como "janelas para outras partes do mundo", escreve a narradora do novo romance de Carol Bensimon. Conforme as distâncias diminuíram, "os dioramas também viraram pequenas máquinas do tempo, vitrines de nostalgia."

Dioramas, para quem não tem dicionário à mão, são os espaços protegidos por vidros que imortalizam cenas da natureza em museus, se esforçando para manter a impressão de aquelas carcaças de animais estão prestes a se mexer. É também esse o nome do livro que Bensimon está lançando —e uma metáfora oportuna para toda a sua obra.

carol bensimon sentada num banco com quadros atrás
A escritora Carol Bensimon, que publica 'Diorama' após vencer o prêmio Jabuti por 'O Clube dos Jardineiros de Fumaça' - Marco Antonio Filho/Divulgação

Uma das grandes vozes literárias de sua geração e recém-confirmada no elenco da próxima Flip, a gaúcha de 40 anos dominou a construção de personagens que se apartam de seu passado e se veem, a alguma altura, obrigados a confrontar lugares e pessoas que deixaram para trás.

Seus protagonistas, como a taxidermista Cecília, aparentam estar fugindo o tempo todo —tentando jogar justificativas ao ar, mas sempre parecendo ter um dínamo constante que os move em força centrífuga. "Bom, não vamos entrar numa sessão de psicanálise", diz a escritora rindo, durante uma entrevista na sede da Companhia da Letras.

"Esse padrão foi algo que fui notando junto com os meus leitores", diz ela. "Essa duplicidade do deslocamento e o lugar da família puxando de volta. A protagonista sem nunca conseguir se libertar."

Assim como sua autora, Cecília mora na Califórnia há uns bons anos, depois de passar infância e juventude no Rio Grande do Sul. Era também em Mendocino, pequena comunidade costeira do estado americano, que morava o protagonista maconheiro de seu romance anterior, "O Clube dos Jardineiros de Fumaça", premiado no Jabuti.

A relação da escritora com seu lugar de origem é ambígua —motivada, quem sabe, pelo fato de seus avós terem ido parar em Porto Alegre após fugir do Egito pela perseguição do governo a judeus sefarditas. "Acho que sou atravessada por uma identidade confusa, de nunca ter me sentido propriamente brasileira ou sei lá."

A escritora dá entrevista olhando com frequência para as mãos, relutante em sair da introspecção enquanto costura sua vida às de suas criações. Um lenço azul e rosa no pescoço orna com o cabelo castanho solto nos ombros, e suas botas de cano curto caberiam perfeitamente em qualquer uma das amigas que protagonizam "Todos Nós Adorávamos Caubóis", seu cultuado romance de 2013.

"Em Mendocino, sinto como se tivesse achado meu lugar", diz afinal. "A impressão que tenho das minhas amizades é que todo mundo escolheu morar ali. Não é ‘nasci aqui, então continuo aqui’. Eu gosto dessa atmosfera de escolha."

Essa divagação toda faz sentido porque permeia cada página de "Diorama". A relação de Cecília com o pai, uma bola de ferro em seu tornozelo, é marcada por um crime bárbaro inspirado no caso real de José Antonio Daudt, deputado e radialista gaúcho morto a tiros em frente ao seu apartamento nos anos 1980.

A jovem é filha do fictício Raul Matzenbacher, principal acusado do assassinato, e o exílio dela nos Estados Unidos remete o tempo todo às reverberações daquele episódio.

Conforme a narrativa se desenrola, fica claro que muito ali se explica pelo tradicionalismo repressivo de uma comunidade armada até os dentes. Uma das cenas mais libertárias de "Diorama" é quando Cecília, beirando os 40 anos e namorando um americano, vai para a cama com a jovem garota que trabalha no caixa do supermercado. Não demora para que percebamos também que a sexualidade é uma questão que pulsa latente no subterrâneo de toda a história.

Quando Bensimon publicou "Todos Nós Adorávamos Caubóis", que girava em torno de duas amigas-amantes explorando quartinhos de hotel pelo interior gaúcho, era incomum que houvesse romances brasileiros com holofotes em mulheres homossexuais.

"Quando eu cresci, meio que não tinha referência de relacionamento lésbico. E aí não estou nem falando só de literatura brasileira, mas de qualquer produto cultural", afirma. "Eu tinha que fantasiar um pouco. Ouvia uma banda chamada Veruca Salt nos anos 90, e as mulheres se olhavam de um jeito meio estranho, meio ambíguo, eu ficava achando que elas tinham alguma coisa. Mas isso era tudo."

Bensimon mora com a companheira na Califórnia há quatro anos, mas já namorou homens. Perguntada sobre bissexualidade, ela prefere falar na escala Kinsey, que estabelece a atração sexual como algo fluido medido em gradação de 0 a 6, do mais ao menos hétero.

"Na época do colégio, eu me considerava um 5. Aí acho que caí um pouco na escala, porque tive um relacionamento sério com um homem, mas hoje eu me vejo bem para o lado da homossexualidade extrema."

É uma postura que mostra abertura à exploração, como fazem tanto Cora e Julia em "Caubóis" quanto a Cecília de seu último romance. Não é sem resistência, porém.

A taxidermista, meticulosa, se acostumou a congelar um passado remoto no tempo enquanto escapa do seu. Olha feras nos olhos, mas se esquiva de pessoas —o romance traça o percurso de uma mulher que, enfim, aceita ver o diorama de sua própria vida.

Tudo isso tecido numa narrativa hábil em entrelaçar passado e presente na mesma página, sem nunca perder o leitor. "Eu não consigo e nem gostaria de escrever uma história que avança em ordem cronológica", afirma a escritora. "Até porque eu acho que não funciona assim na vida real."

Nossa infância segue aqui conosco, afinal, assim como nosso desejo de futuro. A vida está tanto no que já foi quanto no que ainda vai ser.

Há um momento singelo em "Diorama" quando o namorado de Cecília, Jesse, depara com o trabalho dela pela primeira vez. Elogia a vivacidade de um coiote empalhado há décadas que, "de alguma forma esquisita, ainda estava ali". Cecília se admira —e Bensimon pisca um recado aos leitores. "Jesse havia escolhido, entre a vida e a morte, perceber a vida."

Diorama

  • Preço R$ 69,90 (288 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Carol Bensimon
  • Editora Companhia das Letras
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