Descrição de chapéu
Filmes Festival de Berlim

'O Perdão' reverencia longa história do cinema iraniano e força feminina

Filme escancara a excrescência da pena de morte, com drama de viúva que tenta exigir reconhecimento de erro da Justiça

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Lúcia Monteiro

Professora de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense (UFF)

São Paulo

As manifestações contra o regime iraniano após a morte de Mahsa Amini, mulher de 22 anos presa pela polícia dos costumes por não usar o véu de maneira apropriada, conferem atualidade ao filme "O Perdão", já em cartaz.

Exibida no Festival de Berlim de 2020, a produção conta a história de Mina, mulher cujo marido foi julgado culpado de um assassinato –e executado. Um ano mais tarde, a viúva recebe a notícia de que o verdadeiro assassino confessou o crime.

Cena do filme 'O Perdão', de Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha
Cena do filme 'O Perdão', de Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha - Divulgação

Daí em diante, a protagonista tenta exigir da Justiça o reconhecimento do erro e um pedido público de desculpas. Sua busca, que estrutura o filme, é acompanhada de uma sequência de trágicas reviravoltas que acometem Mina e sua filha Bita, garota de oito anos que não fala nem ouve.

Por receber a visita de um homem que se apresenta como amigo do marido, o proprietário de seu apartamento a expulsa de casa. Afinal, uma viúva não pode dividir o mesmo ambiente que um homem, a portas fechadas. Uma viúva tampouco tem direito de alugar um apartamento em seu nome. Tudo a empurra a viver com o sogro e o cunhado, que a assedia e tenta tirar vantagem dela.

A protagonista é interpretada por Maryam Moghadam, atriz conhecida por sua participação em "Cortinas Fechadas", obra de 2013 do premiado Jafar Panahi, proibido de filmar pelas autoridades do país.

Na crítica internacional, embora os elogios prevaleçam, há ressalvas com relação ao excesso de subtramas, sempre intensificando a tragédia da viúva, e a certo maneirismo da imagem.

Moghadam e seu companheiro, Behtash Sanaeeha, escreveram e dirigiram "O Perdão" após entrevistarem dezenas de pessoas que passaram por situações parecidas. No Irã, mais de 500 penas de morte são executadas por ano.

Além disso, o noticiário atual ajuda a dar a dimensão das dificuldades enfrentadas pelas mulheres iranianas cotidianamente. O calvário de Mina, infelizmente, é bastante verossímil.

Na imagem de "O Perdão", predominam planos fixos e enquadramentos frontais, numa tradição que remonta à estética das miniaturas persas e a momentos importantes do cinema iraniano, popularizado mundo afora com os filmes de Abbas Kiarostami.

Há, de fato, diversas passagens que reverenciam a história do cinema no Irã. O nome da filha de Mina homenageia "Bita", de 1972, grande sucesso de público da carreira de Hajir Dariush, farol da chamada nouvelle vague iraniana.

A referência ao filme não é fortuita. Realizado antes da Revolução Islâmica, de 1979, ele conta a história de uma mulher que tenta fugir de um casamento arranjado e tem no papel-título a cantora Googoosh, ícone pop do país.

Para além da precisão estética e da cinefilia da direção, "O Perdão" suscita uma discussão importante sobre o ato de perdoar, a dificuldade de assumir a culpa e o desejo de vingança. E escancara a excrescência da pena de morte, figura jurídica incompatível com a possibilidade do erro.

Repetida diversas vezes, a frase "foi a vontade de Deus" tenta encerrar qualquer discussão sobre as perversidades do regime. Esse "cala boca", porém, não consegue fazer a viúva desistir. Simbólicos nesse contexto de opressão às mulheres, o mutismo e a surdez da garotinha Bita não significam passividade.

Ver "O Perdão" nos ajuda a entender as violências a que são submetidas as mulheres iranianas. Mas isso não culmina numa visão delas como vítimas. É, sim, uma ode à força, à combatividade e à luta as mulheres –algo que testemunhamos atualmente nas ruas de Teerã e em dezenas de outras cidades iranianas.

O Perdão

  • Classificação Não informada
  • Elenco Maryam Moghadam, Alireza Sani Far e Pouria Rahimi Sam
  • Produção Irã, França, 2022
  • Direção Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.