Irã usa religião como desculpa para violência contra mulher, diz relator da ONU

Javaid Rehman vê nos protestos contra morte de Mahsa Amini possível ponto de virada para direitos femininos

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A morte da jovem curda Mahsa Amini é resultado do uso da religião como uma espécie de desculpa para a violência contra as mulheres, afirma à Folha Javaid Rehman, relator especial da ONU para a situação dos direitos humanos no Irã.

Para o especialista britânico-paquistanês, o fato de Amini ter morrido sob custódia da polícia por supostamente violar regras sobre o uso do véu islâmico se junta à repressão contra os protestos críticos ao regime teocrático do Irã como sintomas da escalada de violência sob a liderança do presidente Ebrahim Raisi.

O professor da Universidade de Brunel, em Londres, afirma ainda que há um recrudescimento da repressão sob o líder linha-dura, mas vê nas mobilizações após a morte de Amini uma oportunidade-chave para conquistas de direitos das mulheres.

Crítico a sanções, Rehman diz que falta pactuar consensos sobre direitos humanos para que a comunidade internacional pressione o Irã e lista outros tipos de violações que tem documentado sob o guarda-chuva do regime iraniano, como o matrimônio infantil.

Mulheres exibem fotos de Mahsa Amini durante protesto em apoio a mulheres iranianas na embaixada do Irã em Bruxelas - Kenzo Triboullard - 23.set.22/AFP

Os protestos no Irã ganharam força por se tornarem uma válvula de escape para insatisfações diversas? Ou o caso de Mahsa Amini representa uma exceção? Historicamente ocorrem protestos no Irã, todos os anos, mas alguns são mais significativos. Em 2019, a população protestou de forma muito incisiva, e as forças de segurança mataram mais de 300 manifestantes.

O caso de Amini, vítima da brutalidade estatal, começa como um protesto, mas está se desdobrando em um movimento que reivindica ou reafirma os direitos das mulheres. A política do uso do hijab viola direitos humanos fundamentais das mulheres e sua dignidade.

Diria que não é apenas mais um caso infeliz. O povo do Irã agora se levantou e não está aceitando a violência perpetrada pelo Estado. O Estado está mais uma vez exercendo uma atitude repressora por meio da brutalidade. E temo que, com essa maneira de operar, haja ainda mais mortes.

Manifestantes pró-regime em protesto no Irã contra questionamento sobre uso do hijab - Majid Asgaripour - 23.set.22/Wana/Reuters

Vimos também manifestações pró-regime. Como descreveria a opinião pública no Irã? O Irã é um Estado autoritário, que reprime direitos civis fundamentais. Mas usar a força não acaba com a mobilização: as pessoas sabem que têm direitos fundamentais.

A grande maioria dos iranianos já não aceita essa repressão. Quer viver em paz, são democratas, querem que o Estado de Direito e os direitos humanos sejam respeitados.

Há alguma fresta para a liberdade de expressão? O Estado se tornou mais repressivo e intolerante desde que Ebrahim Raisi chegou ao poder. Ele é parte do establishment há décadas. Era chefe do Judiciário quando tivemos os protestos de 2019 e manifestantes foram mortos e torturados.

Do início deste ano até 10 de setembro, numa estimativa conservadora, ao menos 400 pessoas foram sentenciadas a morte e executadas. Houve uma escalada nas violações dos direitos humanos. É chocante que o Irã tenha mais de 80 crimes puníveis com pena de morte. Crianças infratoras foram executadas, porque a lei permite.

Presidente do Irã, Ebrahim Raisi, durante entrevista coletiva em Nova York - Ed Jones - 22.set.22/AFP

Esse cenário sofreu alterações durante a pandemia? Houve questões sobre a má gestão da crise. Iranianos alegaram que, devido às sanções, não eram capazes de atender à população. Sempre fiz campanha pela flexibilização das sanções, particularmente por motivos humanitários, mas as autoridades tiveram uma responsabilidade fundamental.

No início de 2021, o líder supremo disse que se recusaria a aceitar vacinas de países como EUA ou Reino Unido. E isso levou a mortes desnecessárias. O Irã foi um dos países do Oriente Médio que mais sofreu. Qualquer um que tenha tentado questionar a política de Covid foi enviado para a prisão.

O senhor fala da baixa eficácia das sanções. Como a comunidade internacional pode pressionar por mudanças? Temos que estar unidos em certas questões. Os direitos das mulheres, em particular, são valores que nunca devem ser violados. Há muitos países e tradições que aplicam um relativismo cultural ou religioso, e isso não é aceitável.

Se nos unirmos, autoridades iranianas terão que aceitar que a violência não é aceitável. O apedrejamento até a morte por adultério para mulheres ainda está previsto no Código Penal, por exemplo. Mas a pressão fez com que tenha havido uma moratória já há alguns anos.

Sanções podem e têm tido impacto negativo, especialmente no direito à saúde, mas não as vejo como solução definitiva para reformar o sistema.

Então acha que a onda de mobilização surtirá efeito? As autoridades nunca esperavam que a morte de uma pessoa fosse gerar isso. Para a surpresa deles, o mundo reagiu. Espero que possamos mudar a vida de milhões de mulheres que sofrem no Irã. Não devemos descansar, essa morte não pode ter sido em vão.

Algo bom sairá dessa tragédia. Acredito que as pessoas começarão a questionar esse regime autoritário, extremista e intolerante. Dirão: não, o islã não permite isso. Nenhuma religião permite isso.

Mahsa Amini era curda. Qual a importância desse fator? O povo curdo tem sido alvo dessa brutalidade e da repressão por décadas e sente de maneira muito forte a injustiça do sistema. Há um número desproporcional de curdos executados todos os anos. O Estado reprime seu direito à língua, à educação, à liberdade. O fato de Amini ser curda acrescenta a dimensão da violência étnica no Irã aos protestos.

Javaid Rehman, relator especial para direitos humanos no Irã, durante sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU - Jean Marc Ferré/ONU

Que outros tipos de violações de direitos humanos o senhor tem observado como relator especial? Vemos meninas e mulheres sofrendo todo tipo de discriminação e violência. A lei permite que meninas a partir dos 13 anos se casem. E meninas ainda mais jovens também podem se casar, com a permissão do pai e de um juiz. O casamento infantil é forçado, destrói a vida toda da criança.

Na questão das execuções, também há um elemento discriminatório de gênero. A lei diz que uma menina a partir dos 9 anos e um menino a partir dos 15 podem ser condenados à morte por certos delitos. Há ainda partes do Código Penal que exoneram o chamado crime de honra, permitindo que mulheres sejam assassinadas.

O mundo se chocou tanto com a retomada do Talibã no Afeganistão, enquanto marginalizava o que se passa no Irã. Países como Afeganistão e Irã acham desculpas religiosas para a discriminação de gênero. Mas isso está absolutamente errado. Trata-se apenas de uma desculpa de certos grupos de homens que querem reprimir mulheres e usar a violência contra elas.

O caso de Amini também envolve a participação da 'polícia moral'. O que pensa dela? Não tem nenhum papel a desempenhar em uma sociedade que respeite os direitos humanos. As pessoas devem ter o direito de tomar decisões em questões morais. Mulheres devem ter o direito de escolher se querem ou não usar o hijab. A polícia deveria estar ajudando a sociedade, promovendo os direitos humanos, em vez de crescer a repressão.

O senhor tem tido êxito nas tentativas de diálogo com o regime? Acredito fortemente no diálogo. Queremos uma mudança positiva no Irã. Tenho pedido acesso, mas eles não têm permitido que eu visite o Irã. Peço à comunidade internacional que pressione para que permitam a visita para conversar com as pessoas, visitar as prisões. Assim, minha avaliação terá ainda mais peso.


Raio-x | Javaid Rehman

Relator especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos no Irã desde 2018, é professor na Universidade de Brunel, em Londres, onde leciona disciplinas sobre direito internacional e lei islâmica.

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