Descrição de chapéu Artes Cênicas

Com o corpo em pedaços, bailarina dança as angústias do Brasil nas eleições

Adriana Nunes apresenta no Centro da Terra, em São Paulo, solo inspirado pela pandemia de Covid-19 e pelo caos político

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São Paulo

Pedaços de corpo se agitam no Centro da Terra, espaço cultural em Perdizes, bairro da zona oeste de São Paulo. Não é metáfora. São duas pernas de bailarina, balançando e se torcendo, que surgem separadas do tronco, dos braços e da cabeça da intérprete, escondidas e quase imobilizadas por tecidos pretos.

Cena do espetáculo 'Todo', de Adriana Nunes
Cena do espetáculo 'Todo', de Adriana Nunes - Christian Ameln/Divulgação

Há alguns anos, a coreógrafa e bailarina Adriana Nunes começou a pesquisar movimentos com o corpo fragmentado. Primeiro experimentou uma dança só com as pernas, então só os braços, depois com a cabeça. Sem saber no que iria dar.

Vieram as eleições de 2018. Depois, a pandemia de Covid. "Tudo se estilhaçou mesmo, e essa ideia de fragmento ganhou outra conotação para mim —a de um corpo social despedaçado", diz. "Comecei a pensar no meu corpo como um corpo social despedaçado que não consegue se conectar."

O caminho de "Todo", solo que Nunes apresenta nesta quinta e sexta-feira, dias 27 e 28, atravessa cada uma dessas partes —pernas, braços, cabeça— separadamente para tentar chegar a uma integração.

Embora tenha uma certa partitura de movimentos, há muita improvisação, e a dança se torna um retrato do momento. "Estamos quebrados como sociedade, e eu penso numa dança que tenta reconstruir e tornar possível as coisas se relacionarem de alguma forma."

A criação começou na pandemia, que ainda ronda o espetáculo de 40 minutos entre os quais a bailarina, aflita, passa metade do tempo com a cabeça coberta. "Resolvi representar a angústia com um elemento concreto —um pano que me impede de ver e dificulta a respiração. É neste lugar que chegamos. Não sei como dá para aguentar."

O sufoco, agora, não é mais a pandemia, mas as eleições. A três dias do segundo turno, "Todo" se torna ainda mais angustiante para quem dança e para quem assiste. A esta altura, não é spoiler dizer que não é uma dança agradável ou bonita, no sentido convencional do termo.

O corpo desmembrado também remete às eleições, diz Nunes, porque cada membro da sociedade parece ver um mundo diferente e um jeito diferente de salvá-lo ou de acabar com ele.

O estraçalhamento, ela afirma, ainda diz respeito à agonia de fazer dança contemporânea no Brasil. Nos escombros da cultura, há um lugar bem no fundo do poço para esta arte, que sempre teve menos visibilidade do que outras linguagens artísticas.

"Muita gente nem sabe do que se trata. Vai ao cinema, a shows, ao teatro, mas nunca pensa sobre a programação de dança", afirma. "Está cada vez mais difícil. A maior parte de meus amigos bailarinos está fazendo outras coisas, porque tem que sobreviver."

"Com o país indo por água abaixo, às vezes penso que deveria estar fazendo outra coisa também, virando voto, fazendo ação social. Daí me lembro do direito à arte, tão importante quanto comida, moradia, e entendo que dança também é luta política."

Ao fim do espetáculo, depois de tirar o pano que cobre e separa a cabeça do corpo, a bailarina se dirige ao público, reunindo seus pedaços de corpo e desejos. Quer abrir ouvidos e mentes de iludidos ou mal-intencionados, diz. Juntar o lixo espalhado e os projetos engavetados. Juntar "toda a beleza que a gente foi capaz de um dia criar" para, com todos esses fios soltos, continuar a dançar.

Todo

  • Quando Qui. (27) e sex. (28) às 20h
  • Onde Centro da Terra - rua Piracuama, 19, Pompeia
  • Preço De R$ 20 a R$ 60, no Sympla ou na bilheteria do teatro
  • Direção Adriana Nunes
  • Trilha sonora Daniel Mendes
  • Iluminação Lúcia Galvão
  • Figurino Anna Luiza Marques
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