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Em 'Mutzenbacher', na Mostra de SP, homens leem clássico pornô

Novo documentário de Ruth Beckermann comenta as visões masculinas a partir de um clássico da literatura pornográfica

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Mutzenbacher

  • Quando Em cartaz na Mostra de SP: Cine Marquise, qui. (27), 21h30; Cine Satyros Bijou, ter. (1º/11), 15h45
  • Classificação 16 anos
  • Produção Áustria, 2022
  • Direção Ruth Beckermann

Quatro anos atrás, a diretora austríaca Ruth Beckermann exibia na Mostra de Cinema de São Paulo "A Valsa de Waldheim", um filme que relembra como o diplomata Kurt Waldheim foi eleito presidente da Áustria por dois mandatos mesmo após seu passado nazista ter sido escancarado para o público, exibido por aqui ao som dos fogos de artifício pela eleição de Jair Bolsonaro.

Seu novo documentário, "Mutzenbacher" também se volta para uma polêmica que poderia comentar este Brasil que fervilha com outra corrida eleitoral tão definitiva quanto a de 2018 —ainda que desta vez conexão seja mais alusiva e lúdica.

Cena do documentário 'Mutzenbacher', da diretora austríaca Ruth Beckermann
Cena do documentário 'Mutzenbacher', da diretora austríaca Ruth Beckermann - Divulgação

Beckermann recupera um polêmico clássico da literatura pornográfica, "Josephine Mutzenbacher ou A História de Vida de um Prostituta Vienense Narrada por Ela Mesma", publicado anonimamente em 1906 —mas que especulam ser do austríaco Felix Salten, o mesmo autor de "Bambi", a fábula infantil que gerou um dos filmes mais sutilmente eróticos da Disney.

O cenário é uma fábrica abandonada, com um piano, um mancebo e, o elemento essencial, um largo e antigo sofá rosa com uma estampa florida. É aqui que a diretora, que acompanhamos só pela voz, confronta os homens que, num trocadilho que talvez não funcione em alemão, vão performar um "teste do sofá".

São homens de 16 a 99 anos interessados em fazer um suposto teste de elenco, para um filme sobre o livro pornô, que devem declamar passagens da obra recheada de relações explícitas com dezenas de sinônimos para pênis e vagina, diálogos melosos, estocadas e gemidos, maridos brochas e, o mais incômodo, pedofilia —a vida da personagem é narrada das primeiras experiências na infância até os 18 anos. Em outras palavras, é um livro escrito por um homem repleto de fantasias que ganhariam validade por ter uma narradora feminina.

A escolha da diretora, percebe-se logo, não é nada gratuita —assim como não era "O Caderno Rosa de Lori Lamby", obra-prima rejeitada da paulista Hilda Hilst. O livro circulou ilegalmente na mesma Viena que recebera pouco antes os "Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade" de Freud, que introduzia ideias como a perversão e a sexualidade desde a infância. É, ainda, fruto da cidade que se expandia, aumentando a demanda pelas mulheres da vida.

O sofá se torna um divã em que jovens e velhos reagem aos textos, com algum constrangimento, comentando também sobre suas vidas sexuais particulares, tocando em tabus como o sexo a três, o apetite sexual na tenra idade, o desejo por meninas jovens, o incesto até o pudor ao se descobrir gay.

Pouco interessa à diretora julgar o que cada um faz na alcova, mas, sim, deixar que suas palavras, no confronto com a literatura de cem anos atrás, provoquem o espectador do nosso tempo —que teoriza sobre a masculinidade tóxica, as fronteiras entre flerte e assédio e afins. São alguns dos temas que chegam nas falas dos entrevistados —algumas se estendem mais da conta, até pelo tom pré-fabricado, e acabam enfraquecendo o conjunto.

O procedimento pode evocar ao espectador brasileiro aquele Eduardo Coutinho de "Jogo de Cena" em diante, mas aqui valem menos os depoimentos individuais do que a tese geral para qual contribuem.

Afinal, não sabemos nem a idade, a origem, muito menos os nomes das pessoas, ainda que ouçamos suas histórias íntimas. Verdade ou não, revelam para nós máscaras que devem levar psicanalistas ao êxtase.

Entre uma leitura e outra, Beckermann aproveita para brincar com o espaço cênico, propõe improvisos e enfileira os atores para que bradem em uníssono diálogos como: "O que o pau faz na boceta?", "Fode", "E o que mais?", "Fornica, trepa, transa, mete, cutuca, enfia".

São instantes em que somos convidados a rir bem mais do que nos monótonos "textões" que compõem o roteiro de algo como "Triângulo da Tristeza", também em exibição na Mostra.

A própria diretora aproveita para provocar um rapaz que se candidatou por saber que era um filme dela. "Então, se eu dissesse para tirar suas roupas e fazer sexo com uma árvore, você faria?", diz ao rapaz, convencido de que a experiente cineasta dá valor artístico a tudo que filma.

Não deixa de ser uma questão pertinente a qualquer obra sobre sexualidade hoje —basta ver as pessoas que deixaram a sala ao longo da sessão. Espero que voltem. Ou que ainda vejam "Até Sexta, Robinson", também em exibição no festival, que retrata a correspondência entre Jean Luc-Godard e o cineasta iraniano Ebrahim Golestan.

Indo direto ao ponto, há cenas em que o próprio Godard fala objetivamente sobre as diferenças entre língua e linguagem nos seus filmes. A chave fica na sua conclusão: "O cinema não faz perguntas, portanto não dá respostas".

Beckermann, como o clown francês, sabe cutucar o espectador com vara curta, mas não está aqui para ditar a moral sexual de qualquer um, muito menos omitir a existência de obras como "Mutzenbacher". Os brasileiros, pelo contrário, parecem não demonstrar semelhante esclarecimento nas urnas.

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