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Bolsonaro criminaliza a vida na favela, afirmam Geovani Martins e José Falero

Expoentes da literatura brasileira, carioca e gaúcho publicam obras que mostram jovens sob o Estado policial nas periferias

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pintura de pessoas carregando lençol ensanguentado numa favela

Obra do artista plástico carioca Jota Divulgação

Rio de Janeiro

Wesley fuma com um homem mais velho e ouve o discurso dele sobre a guerra às drogas na Rocinha, quando é interrompido pelo barulho de três tiros. "Ouviu isso? Eles quer botar uma UPP aqui agora", diz o Professor. "Tô ligado", responde Wesley. Mais uma rajada de metralhadora. "Eles vão pacificar nós! Vão pacificar!", berra o idoso.

Num conto de outro livro, três adolescentes negros escutam uma salva de tiros enquanto zanzam pelas quebradas de Porto Alegre. Dão de cara com policiais investigando um corpo alvejado com três balas no meio da rua. Um deles perde a paciência. "Cada um pra sua casa, hein? Se eu pegar vocês na rua, eu vou bater em vocês até eu me cansar!"

"Via Ápia", o romance de Geovani Martins que contém a primeira cena, se aparta em tempo e espaço de "Vila Sapo", coletânea de José Falero onde está o segundo trecho. Mas não dá para se livrar da ideia de que estão falando de mundos parecidos.

montagem com dois homens de camiseta e cavanhaque, um deles com dreads no cabelo e outro vestindo boné
Geovani Martins e José Falero, escritores que se tornaram expoentes da literatura brasileira - Divulgação

Feito rojões, os dois autores se tornaram expoentes da literatura brasileira com livros que surgiram num clarão. Martins é o autor celebrado de "O Sol na Cabeça", coleção de contos de quatro anos atrás, e agora traz à luz seu primeiro romance.

Com título tirado da principal via de acesso à Rocinha, o autor conta a vida de cinco jovens seguindo o calendário da instalação das Unidades de Polícia Pacificadora na maior favela do Brasil pelo governador Sérgio Cabral, dando ares de crônica a anos de chumbo.

Iniciado em 2011, esse momento histórico foi determinante para que o Brasil virasse o que virou hoje, segundo Martins. "Foi um período-chave para que a sociedade civil naturalizasse a imagem do Exército invadindo o Alemão, ocupando o Complexo da Maré. Foi o que levou a chegar a essa taxa de mortalidade absurda registrada pela Polícia Militar."

O autor, que morava na Rocinha no período, quis pintar o retrato "com os olhos e cabeça" de quem estava vivendo ali, ou seja, os jovens pretos que se tornaram os mais afetados por um Estado cada vez mais policialesco.

Há um aspirante a tatuador, um animador de festa que galga carreira como garçom, um garoto que entra no serviço militar e se vê empunhando armas, atordoado, em sua própria comunidade —homens múltiplos, que equilibram o clima de tensão permanente com a necessidade de acordar cedo para ganhar o pão.

"Bolsonaro falou que todos os moradores do Complexo do Alemão são traficantes, e isso repete muito esse tipo de política", aponta Martins. "Se a Rocinha tem umas 100 mil pessoas, não deve ter mil ligadas ao crime. Esse movimento de pacificação, entre aspas, afetou a vida de vários moradores."

O escritor apareceu para a entrevista, na sede da Companhia das Letras no Rio de Janeiro, vestindo uma camiseta vermelha estampada com o rosto do ex-presidente Lula. Os eventos que Martins narra em seu romance aconteceram todos durante um governo petista, e o repórter pergunta as razões de seu empenho para que o partido volte ao poder.

"O Brasil não ficou ruim a partir do Bolsonaro, mas piorou em todos os sentidos", responde o autor, que vê retrocessos no quadro da fome e na quantidade de gente pedindo dinheiro na própria comunidade, além de um discurso violento de criminalização da favela, que "saiu do armário" de forma mais contundente.

Ele dá um exemplo pessoal. Diz ter sido abordado por um civil armado em pleno parque do Ibirapuera, em São Paulo, enquanto fumava. "Foi uma coisa que nunca tinha me acontecido antes. Ele veio armado para cima de mim, jogou fora a maconha e me expulsou do parque."

Falero também tomou a decisão consciente, em "Vila Sapo" —reedição pela Todavia de uma obra lançada pela mineira Venas Abiertas—, de humanizar histórias das periferias adotando os tons mais variados possíveis, da leveza de crianças pregando peças nos vizinhos com uma camisinha a um jovem traumatizado ao ver um crânio sendo esmagado no chão à luz do dia.

"Existe uma estigmatização dessas pessoas", diz o autor do elogiado romance "Os Supridores", que quis registrar em livro o lugar onde cresceu em Porto Alegre e que nem se achava no mapa, "tipo a cidade de ‘Bacurau’". "Mesmo que sejam trabalhadores, olham para essas pessoas e veem ali um conjunto de bandidos."

Falero quis ir além e ressaltar um outro lado dessa moeda espinhosa, buscando "problematizar a humanidade das pessoas da periferia que efetivamente entram para o crime".

Naquele que talvez seja o conto mais pungente de toda a obra, "Dignidade-Relâmpago", dois homens sequestram com brutalidade uma mulher e, enquanto rodam de carro com ela no porta-malas, conversam sobre o amor incondicional que nutrem por suas mães e pretendentes.

"Não é o cara que escolhe essas parada aí, tá ligado. É como se eu te dissesse pra tu deixar de amar a tua coroa, por exemplo", diz um deles. "Não dá, tá ligado. Tá dentro da gente. Eu não consigo deixar de gostar daquela mina. O máximo que eu posso fazer é deixar ela quieta no canto dela. É só isso que eu posso fazer. Mas dentro de mim, mano, dentro de mim tá foda de segurar o rojão."

Falero comenta que ativistas de classe média costumam cair de paraquedas na Vila Sapo tentando alertar os jovens dali contra os perigos da vida de crime. "É muito louco, porque aquele cara sabe disso melhor do que eles, porque ele perdeu os amigos, às vezes já perdeu um parente."

"O que a gente tem que pensar é outra coisa. Por que, mesmo sabendo de tudo isso melhor do que ninguém, às vezes as pessoas fazem essa escolha? Isso que é assustador. E aí a gente vai perceber uma coisa absolutamente trágica: a precarização do mundo do trabalho muitas vezes é pior do que levar uma vida dessas."

Martins, do seu lado, reflete sobre a ligação entre a vida destinada aos moradores das periferias e a opção por Bolsonaro. "Muita gente vota nele não por ser fascista ou por acreditar que ele é o melhor", mas pela associação do presidente a uma imagem antissistema. "Essa pessoa que trabalha seis dias por semana, recebe salário mínimo, não tem assistência em hospital nem acesso a escola, ela está contra o sistema."

No ponto de vista de Falero, se Lula ganhar a eleição, "a gente bota minimamente a civilização no Brasil, a gente começa minimamente a discutir políticas públicas de progresso do país". Mas, mesmo num cenário de vitória do candidato, uma perspectiva ainda o irrita.

"Efetivamente, sabe o que vai acontecer? Meu primo vai continuar sendo assassinado aqui, as pessoas vão continuar sendo exterminadas. E aí ninguém se mobiliza. Apesar de todo o alinhamento ideológico que eu tenho com o pessoal do campo progressista, e eu vou somar com eles, é muito foda saber que eles não vão somar quando os problemas forem meus."

Apesar disso, o derrotismo não predomina no seu discurso. Basta ver as histórias que Falero desfia com mais empolgação.

O escritor conta que, durante sua infância, não conhecia ninguém que tivesse o hábito de ler. No colégio em que estudou, na periferia de Porto Alegre, nem tinha biblioteca. Hoje ela não só existe como é bem frequentada —e ele, convidado a conversar sobre sua carreira com os alunos.

Numa dessas vezes, ele lembra sorrindo, foi surpreendido por uma menina de uns 12 anos que o puxou pela manga. E que o encheu de esperança. "Tio", perguntou ela, "o senhor já leu Chimamanda?"

Via Ápia

  • Preço R$ 64,90 (344 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Geovani Martins
  • Editora Companhia das Letras

Vila Sapo

  • Preço R$ 49,90 (80 págs.); R$ 34,90 (ebook)
  • Autoria José Falero
  • Editora Todavia
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