Descrição de chapéu
Livros

Livro genérico de Ignácio de Loyola Brandão é crítica rasa a Bolsonaro

'Deus, o que Quer de Nós?' quer ser ato de resistência sobre a catástrofe da pandemia, mas enfileira listas banais e repetitivas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Alcir Pécora

Professor titular de teoria literária da Unicamp

Deus, o que Quer de Nós?

  • Preço R$ 59 (200 págs.); R$ 41,30 (ebook)
  • Autoria Ignácio de Loyola Brandão
  • Editora Global

"Deus, o que Quer de Nós?", novo romance de Ignácio de Loyola Brandão, é uma distopia concebida dentro da catástrofe da pandemia da Covid-19 potencializada pelo governo de Jair Bolsonaro.

Brandão não se dá ao trabalho de disfarçar as referências. No máximo, dá apelidos aos bois, como chamar a pandemia de "Funesta", Bolsonaro de "Desatinado" ou "Destemperado", os filhos numerados dele de "sem nomes, conhecidos apenas pelas letras", o cercadinho do Alvorada de "curral" et cetera.

O escritor Ignácio de Loyola Brandão, imortal da Academia Brasileira de Letras - Letícia Gullo/Divulgação

Tudo é visto da perspectiva de um velho que acaba de perder a mulher e a enterra numa cova rasa, o que o leva a um processo progressivo de delírio, marcado por figuras de acumulação e de amplificação. Assim, os horrores da pandemia, no romance, já duram por um período que se aproxima dos dez anos.

O golpe do Desatinado foi consumado e as vítimas fatais da doença quase atingem o número total da população brasileira. A partir da Amazônia, o território nacional é tomado pelo espetáculo de um gigantesco fogo-fátuo.

As estratégias verbais mais usadas para evidenciar essa alucinação são a enumeração de similaridade —"ficava impossível saber onde tinham sido sepultados os pais, tios, irmãs, avós, primos, cunhados, sogros, ex-maridos, filhos, ex-esposas, amigos, afetos, rivais, adversários, inimigos"—, as repetições —"Que fiquem por lá esses muito, muito, muito, muito, mas muito mesmo, muito, muito, muito ricos"— e o estranhamento de termos em desuso —"Encatiçado? Às vezes você usa palavras do português arcaico".

No mesmo diapasão, o narrador enumera nostalgicamente os lugares marcantes que visitou com a amada em viagens nacionais e internacionais, os pratos que degustaram em determinados restaurantes e os amigos presentes numa ou noutra situação, em geral pessoas publicamente conhecidas, chamadas com intimidade pelo primeiro nome —"Contardo", para dar um exemplo.

Por isso mesmo, o que devia soar nostálgico ou comovente às vezes ganha ares de guia de locais turísticos —"Acho mesmo que sou muito mais de pequenas e médias cidades encantadas do que de Paris, Nova York, Dubai, Miami, esses clássicos clichês. Caminhar por Óbidos, Pirenópolis, Spoleto, Punta Del Diablo, Colônia, Areia, Woodstock (Nova Inglaterra), Bruges, Bad Homburg, Santorini"— ou de viagens gourmet —"Você mesmo foi à cozinha e trouxe meu prato, Deus meu, um tartare de peixe branco com maçã verde, creme de raiz-forte e molho de raiz-forte".

Noutras vezes, o "name dropping" dá ao texto uma aparência de colunismo social e literário —"De um grupo de mulheres que vem vindo. Heloisa, Lili, Rosiska, Djamila, Flávia, Lívia, Marina, Tati, Natuza, Rita, Tabata, Marielle, Catarina da Rússia, Ana Miranda, Fernanda, Albertina, Márcia, Luciana, madame Curie, Clarice, Anitta, Simone"—, um contraponto frívolo que enfraquece o cenário de horror.

Na mesma linha, vão os vários toques de cinéfilo —"Na cena da boate nas termas de 'Oito e Meio', é a velha que penetra no pensamento de Marcello Mastroianni"— ou de fã eclético de música —"Ela gostava de dançar ao som de Tony Bennett cantando ‘Tender Is the Night’. Dançava forró ao som de Elba Ramalho, ‘Ciranda da rosa vermelha’ ou ‘Sabiá’"—, que tendem a arrefecer o impacto da violência dos eventos e da percepção alucinada deles.

O livro tem interesse como retrato no calor da hora da regressão política, mental e civilizacional do país, mas ao mesmo tempo é frágil simbolicamente, pois tudo ganha ares de listas banais ou de bloco de anotações rápidas. Está longe de ser cumprido o propósito eventual de misturar imaginação e real, e de desmontá-lo pela fantasia —como o narrador anota a propósito de um filme de Woody Allen.

Também é possível reconhecer o mérito de produzir um romance-testamento que seja, ao mesmo tempo, memorial e ato de resistência diante de um momento catastrófico da existência pessoal e coletiva. A sua forma final, infelizmente, concentra anotações de efeito mais genérico do que de invenção ou vivência.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.