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'Todas as Flores' terá Regina Casé como loira má, rica e amante de Fabio Assunção

Atores falam de relação conturbada na nova novela de João Emanuel Carneiro que leva universo dos cegos ao Globoplay

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São Paulo

O telefone de Regina Casé tocou em 25 de novembro de 2019, logo depois que dona Lurdes acabava de se apresentar na tela pela primeira vez na novela "Amor de Mãe", de Manuela Dias, narrando sua incansável busca pelo filho Domênico. Era João Emanuel Carneiro, outro autor do seleto grupo de criadores de folhetins da Globo, avisando que tinha uma personagem para ela.

"Olha como ele é maquiavélico", diz Casé, rindo. "Ele me liga depois daquela cena em que eu conto toda a minha vida para a personagem da Taís Araujo, numa entrevista de emprego para ser babá", afirma ela. De lá para cá, veio pandemia, a novela sofreu vários revezes no elenco e cedeu sua vez a outras produções na faixa das 21h30 na TV aberta, até ir parar no serviço de streaming do grupo.

A atriz Regina Casé
Regina Casé caracterizada para a novela 'Todas as Flores' - Instagram/@reginacase

Mas Zoé, a personagem oferecida a Casé, ficou de pé e se apresentará ao público a partir do dia 19, quando "Todas as Flores" estreia no Globoplay.

A cada semana, serão despejados cinco capítulos na plataforma, até dezembro, reservando a outra metade de seus 85 capítulos para serem lançados em abril de 2023. Na TV aberta, a produção irá ao ar na faixa das 23h, entre o final de 2023 e o início de 2024.

"Estou apanhando muito", diz a atriz. "É minha primeira vilã, minha primeira loira e a primeira rica que eu faço. Cara, eu nunca tinha feito uma mulher de classe média", surpreende-se, lembrando ainda que há tempos não trocava seu acento original, carioca, pelo sotaque nordestino.

Na contramão de dona Lurdes, Zoé, moradora da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, abandona a filha ainda bebê porque a menina, registrada como Maíra e interpretada mais tarde por Sophie Charlotte, nasceu cega.

Maíra foi criada pelo pai, papel de Chico Diaz, que morre no dia em que a mãe volta a procurar a filha, com o único intuito de conseguir dela um transplante de medula para a primogênita, Vanessa, personagem de Letícia Colin.

"Eu digo que a verdadeira vilã dessa novela é a Vanessa. Ela tem uma canaleta, ela é má o tempo todo, ela me dá aula de vilania." Um dos vídes de divulgação em circulação mostra Vanessa conduzindo a irmã para a beira de um penhasco, enquanto a cega pressente o perigo.

"A Zoé, um dia ela está um amor, no outro comete uma barbaridade. Aí ela cozinha para as filhas, faz um bolo de formigueiro que é o melhor de todos", diz a atriz. "E, quando eu começo a achar que ela não é tão ruim assim, caio do cavalo. Eu vivo me perguntando: ‘Como ela pode fazer isso?’. Então eu fico em conflito o tempo todo, ela é muito complexa."

Para corroborar a angústia, Casé não leu a sinopse. "Toda vez que eu pedia ao João, ele dizia: ‘Para quê? A sinopse já mudou tanto'. E nunca me deu." Em uma das versões a que a reportagem teve acesso, de quando a novela ainda era chamada pelo nome provisório de "Olho por Olho", o enredo é apresentado como "um conto de fadas contemporâneo que revisita um clássico universal, a história da gata borralheira".

"Uma moça cega reencontra a mãe que a rejeitou ainda bebê e se torna, ao mesmo tempo, solução e raiz de todos os problemas da outra."

Sabe-se que Zoé morou na rua, já se prostituiu para sair da miséria, trafica drogas e pessoas. Alega sempre que está fazendo o melhor para os outros. Foi nesse universo que conheceu Humberto, personagem de Fabio Assunção, elemento também inédito na galeria de papéis da atriz.

Os dois formam um par controverso, misto de mãe adotiva com amante. Quando a história começa, sabemos que eles já têm um romance há 30 anos e que foi ela quem lhe arrumou um bom casamento com Guiomar, herdeira de um grande grupo empresarial —e ela repete, sempre que pode, que ele lhe pertence.

"Você não existia, eu é que te inventei", diz Zoé a Humberto, em meio a um repertório de ensinamentos dos quais ela se orgulha, como lembrá-lo de que ele "não sabia nem bater uma carteira" ou "mexer num canivete".

"Às vezes ela vem e o ameaça, ele fica acuado e dali a pouco estão transando, é uma mistura de uma mulher que está montada nele, em função da história que eles viveram. De alguma maneira ela o manipula, e, por outro lado, ele também teve suas vantagens com isso, mas não é uma relação saudável, é uma relação perversa", explica Assunção.

"Zoé é apaixonada pelo Humberto e eu já estou apaixonada pelo Fabio", diz Casé, aos risos. Mas a ligação entre os dois começa a produzir "consequências mais sérias, com crimes mais sérios", conta Assunção, "numa situação em que ele quer tirá-la da vida dele".

Já Guiomar, a mulher abastada, sabe que Humberto se casou por dinheiro, e ele nunca ocupou cargo relevante na empresa da família dela. Os dois têm um filho, Rafael, interpretado por Humberto Carrão, que será alçado ao comando do grupo quando a mãe morrer.

Originário da Gamboa, núcleo que todo folhetim que se preze apresenta para aglutinar os trabalhadores que batalham o pão do dia a dia honestamente, Humberto sofre pela falta de pertencimento. Não conseguiu nem ser aceito como alguém da alta sociedade, pois sempre será visto pela família da mulher rica como um outsider, e também já não se identifica com o pessoal da Gamboa, onde comparece às rodas de samba vestido de terno e gravata.

A Gamboa, núcleo de sambistas da trama, abriga ainda Judite, personagem de Mariana Nunes, trabalhadora incansável, mãe solteira de Pablo —Caio Castro— e grande amor de Humberto, que a deixou para trás em nome da tentativa de ascender socialmente.

"Ele tem as tintas fortes, não tem uma cena de refresco. As relações são todas de embate —com a Judite é um embate, com a Zoé, sempre um embate, com o filho, sempre embate, e com a Guiomar era o tempo todo."

A paixão de Casé por Assunção é recíproca, ele avisa. O ator ouviu falar de seu nome pela primeira vez há mais de 30 anos e foi vê-la então no palco de um memorável espaço da noite paulistana, o Aeroanta, no largo da Batata, em Pinheiros, entre o fim dos anos 1980 e o início dos 1990, quando ela fazia "Nardja Zulpério", peça de Hamilton Vaz Pereira. Os dois, no entanto, jamais haviam trabalhado juntos.

"Todas as Flores" marca ainda a estreia de Assunção e Casé em novelas de João Emanuel, eternamente lembrado como o autor de "Avenida Brasil", de 2012.

Ao chamá-la para o papel, tanto João Emanuel como o diretor artístico de "Todas as Flores", Carlos Araújo, além do diretor de teledramaturgia da Globo, José Luiz Villamarim, disseram-lhe que pretendiam dar leveza a essa mulher, até para compensar a densidade da história, que já carrega nas tintas do melodrama com as perversidades cometidas contra Maíra.

Nem Casé nem Assunção acreditam que a vilania de seus personagens tenha potencial para gerar na plateia algum efeito terapêutico, no sentido de exorcizar maus sentimentos de espectadores ao se verem ali espelhados. Ou seja, Zoé e Humberto estariam longe de um Raskolnikóv, personagem de Dostoiévski, que mata para sanar no público o desejo de matar.

"Eu adoraria que fosse isso, para continuar coerente com todos os meus trabalhos autorais, adoraria dizer que estou fazendo um serviço, mostrando como você não deve ser má como ela, mas não é isso. Ela é muito complexa. É lógico que eu fico querendo defender e arrumar motivo, mas o João diz ‘isso é um folhetim’."

Em compensação, "Todas as Flores" apresenta uma leitura inédita não só do universo das pessoas com deficiência visual, das dificuldades e preconceitos que cercam o mundo dos cegos, mas também da luta contra o capacitismo e a própria difusão desse termo, que é uma forma de segregação ainda muito mal percebida pela sociedade.

Mãe de Benedita, deficiente auditiva, e mulher do cineasta Estêvão Ciavata, que esteve paraplégico por anos e enfrenta dificuldades motoras, Casé se policia o tempo todo para evitar cair na cilada de tratar como excepcional toda atitude de alguém diferente dela.

Foi ela quem apresentou ao diretor Carlos Araújo a profissional que viria a se tornar assistente de direção dele, Natália Santos, que é cega e quem Casé conheceu nos tempos do Esquenta, programa de auditório que apresentava nas tardes de domingo da Globo.

"Estou totalmente imersa nessa luta porque a minha filha se tornou uma ativista e uma palestrante. O capacitismo é um termo relativamente novo, que é você não só ter um preconceito, mas achar que aquela pessoa não é capaz de realizar coisas ou de fazer trabalhos, que ela não pode ser mãe, que quem vai cuidar do filho dela é a avó, que uma pessoa cega não vai trabalhar."

"Eu tenho um marido com deficiência física e tenho uma filha com deficiência física, eu tenho duas pessoas com deficiência dentro da minha casa e vivo isso no dia a dia. Ao mesmo tempo, eu tenho um filho preto e um genro preto. Então a luta antirracista e a luta anticapacitista fazem parte do nosso cotidiano, no café da manhã, almoço e jantar aqui dentro de casa."

Os aprendizados têm sido reveladores também para Assunção, que não tinha a experiência pessoal de Casé e vem encontrando na equipe e em palestras promovidas pela Globo um contexto inédito de trabalho, a começar pela importância do processo de audiodescrição, do set à tela.

"Todas as Flores" será a primeira novela totalmente acessível a pessoas cegas ou com pouca visão.

A abordagem do capacitismo aparece por meio de cenas do dia a dia, quando Zoé elogia a filha, por exemplo, por ela lavar um prato. "Quando ela diz ‘Filha, você é genial, você é um ser de luz, é realmente incrível, é especial’, Zoé dá um show de capacitismo. Também quando diz: ‘Para que ela vai viajar? Ela é cega, não vai nem ver a torre Eiffel, para que ela vai para Paris?’, o que é um capacitismo óbvio, ostensivo."

Assunção conta que outro dia ofereceu ajuda para guiar alguém no estúdio e em seguida, receoso por estar tropeçando no capacitismo, perguntou se aquilo era correto ou não. "Tudo bem, se eu achar que não é necessário, eu vou te dizer. E, se for bem-vinda a ajuda, eu digo sim", respondeu-lhe a profissional.

"Tratar com excepcionalidade faz muito mal a uma pessoa com deficiência", afirma Casé. "A gente acha que está fazendo o bem e acaba botando mais obstáculos para a autonomia e a independência dessas pessoas. Então não é ‘especial’, não é ‘ser de luz’, é uma pessoa diferente de você. Fiquei surpresa em ver como a novela está cuidando isso."

Para o espectador, a inserção do assunto em um produto de entretenimento como uma novela também promete ser revelador. São muitas as questões sociais que já frequentaram a ficção, mas a abordagem da cegueira em um produto audiovisual pede desafios extras, que só agora entram em cena, em boa parte graças aos avanços tecnológicos e ao ritmo de produção do streaming, que demanda prazos com maior planejamento do que a TV linear.

"Todas as Flores" não será uma obra tão aberta como costumam ser as novelas e terá poucas chances de ajustar os rumos da história e seus personagens de acordo com as reações do público. Isso porque o folhetim terá seus 85 capítulos todos gravados até o fim do ano, quatro meses antes de o Globoplay lançar a segunda metade da novela.

Todas as Flores

  • Quando Estreia nesta quarta (19), no Globoplay
  • Autoria João Emanuel Carneiro
  • Elenco Regina Casé, Fabio Assunção e Sophie Charlotte
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