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Limpeza do Davi de Michelangelo provoca fortes emoções, diz restauradora

Obra-prima do Renascimento, exposta em Florença, passa por manutenção regularmente

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Elisabetta Povoledo
Florença | The New York Times

Imagine um emprego que te deixe chegar perto e de modo íntimo —bem perto e bem íntimo— de uma das estátuas mais famosas do mundo.

Esse é um dos benefícios de ser a restauradora oficial da Galeria da Academia de Belas Artes de Florença, onde a tarefa de Eleonora Pucci é tirar o pó regularmente do Davi de Michelangelo, algo que ela descreve como sendo emocionante, e um tanto estressante.

"Poder contribuir, mesmo que só um pouquinho, com a conservação da beleza de Davi faz deste o melhor trabalho do mundo", disse Pucci. "Há algo melhor do que passar a beleza adiante?"

Era uma manhã de segunda-feira, o único dia da semana em que a Galeria fica fechada para o público, e o som de metais ecoava pelo museu enquanto uma equipe especializada erguia um andaime na rotunda que abriga Davi. Durante aquela manhã, o andaime era reposicionado para que Pucci pudesse alcançar a estátua de cinco metros de altura por todos os lados.

Pucci subiu rapidamente até ficar de frente para os olhos gigantes da estátua que Michelangelo esculpiu a partir de um único bloco de mármore entre 1501 e 1504, a primeira estátua colossal nua feita desde a Antiguidade. A Galeria é o lar de Davi desde 1873.

O trabalho começa com fotografias de perto para identificar melhor quaisquer danos à estátua e para verificar quanta poeira e resíduos (de dimensão microscópica) acumularam na estátua desde a última limpeza.

Isso pode variar de acordo com a estação do ano, o número de visitantes e o tipo de roupa que eles estejam vestindo. Fibras microscópicas podem ficar presas em minúsculas teias de aranha em meio aos cachos do cabelo de Davi. "É bem normal", disse Pucci com naturalidade —e ainda outro motivo para ter certeza de que as obras sejam constantemente monitoradas.

Então, a faxina começa.

Usando um pincel pequeno com cerdas sintéticas —"elas são melhores para capturar a poeira", disse ela—, Pucci começa a tocar gentilmente a cabeça de Davi, levantando partículas minúsculas sugadas imediatamente por um pequeno aspirador de pó criado especialmente para o uso em estátuas de museus e na arquitetura. O equipamento ficava preso às suas costas, o que lembrava a mochila de protons da franquia de filmes "Os Caças-Fantasmas".

Ela tomou o seu tempo (a faxina geralmente dura uma manhã inteira), usando movimentos leves e ágeis, e em certo momento acariciou a bochecha de pedra do colosso com as costas da sua mão. Após quase quatro anos fazendo esse trabalho, ela desenvolveu sentimentos fortes por Michelangelo e sua genialidade.

Tirar o pó de Davi, disse Pucci, provoca "grandes emoções" e admiração por um artista capaz de produzir tamanha beleza a partir de pedra. Ela sente o mesmo, diz, quando limpa os chamados prisioneiros ou escravos da Galeria, quatro figuras inacabadas criadas por Michelangelo para o mausoléu do papa Júlio 2º.

"Nos prisioneiros, é possível ver sua técnica, as marcas do cinzel", disse Pucci. "Você entra no processo mental dele. Te dá uma sensação de como ele trabalhava o mármore para libertar figuras que ele acreditava estarem presas dentro da pedra."

Embora seja espanado seis vezes por ano, Davi não passa por uma limpeza profunda desde 2004, em ocasião de seu 500º aniversário, e isso foi feito em meio a uma disputa amarga sobre o melhor método a utilizar.

E, apesar de Davi receber tratamento especial, boa parte do trabalho de Pucci passa por garantir que a coleção inteira do museu esteja nos trinques. Ela verifica pinturas e molduras de madeira para eventuais empanamentos, descamação de tinta e para os primeiros sinais de carunchos.

Não muito longe dali, passando pela famosa catedral renascentista de Florença até chegar à Piazza della Signoria, a praça centra da cidade, restauradores este mês fizeram uma limpeza mais completa na cópia de Davi instalada ali em 1910.

Ela foi feita para substituir a original —encomendada pela República Florentina em 1501 como símbolo de sua liberdade e autonomia— depois de ela ser transferida no século 19 devido à preocupação com a sua conservação. A Galeria foi construída para abrigar a estátua.

Aqui, também, restauradores escalavam o andaime para melhor afixar as compressas feitas de polpa nos braços, costas e glúteos da estátua.

Embebidas em produtos químicos não tóxicos, as compressas são usadas para remover poluentes e matar o mofo, algas e liquens que podem se formar no mármore por causa da exposição constante às intempéries. Por ficar a céu aberto, a estátua também está sujeita à erosão pelo vento, embora esteja parcialmente protegida pelo Palazzo Vecchio, a prefeitura de Florença, do lado de trás.

Quando essa estátua é limpa, disse Linda Bartolozzi, uma das restauradoras, ela recebe retoques, se necessário, e depois é coberta com um produto de proteção para ajudá-la a resistir às intempéries. "Mas ela está em boa forma", acrescentou.

Em março, Bartolozzi e sua equipe tiveram que fazer uma intervenção de emergência após um homem atear fogo a um pano preto que o prefeito de Florença, Dario Nardella, havia colocado sobre a cópia de Davi em sinal de protesto contra a Guerra da Ucrânia. O material do pano era sintético, de modo que ele derreteu e deixou alguns vestígios na estátua, ela disse.

Giorgio Caselli, arquiteto responsável por monitorar a manutenção das obras de arte expostas a céu aberto em Florença, afirmou que o vandalismo é a principal causa dos danos às estátuas da cidade.

"Humanos, vândalos, são provavelmente o maior problema para o patrimônio cultural de uma cidade como Florença", ele disse. "Há um nível de incivilidade que é alto demais."

Caselli mencionou pichações quase diárias em palácios, turistas que usam fontes como banheiros e torcedores arruaceiros que visitam a cidade em dias de jogo. "Esses são os ataques mais agressivos neste momento", afirmou.

A manutenção dos monumentos da cidade segue um cronograma programado, afirmou, acrescentando que, apesar do ataque, a agenda para a cópia de Davi estava cumprindo seu curso. Naturalmente, espanar o pó de maneira regular não fazia parte dessa programação, ele afirmou.

"A chuva toma conta disso", disse.

Tradução de Dani Avelar

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