Descrição de chapéu

Morte de Rolando Boldrin leva embora um pouco da alma brasileira

Grande defensor da música caipira, apresentador impulsionou artistas da MPB e resgatou raízes da cultura nacional na TV

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Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'

Recife

Em 2010, Rolando Boldrin foi homenageado pela escola de samba Pérola Negra no carnaval de São Paulo com o enredo "Vamos tirar o Brasil da gaveta", título tirado de um de seus bordões. Ontem, doze anos depois da homenagem histórica, faleceu o último dos grandes folcloristas da música caipira.

Nascido em 22 de outubro de 1936 em São Joaquim da Barra, interior de São Paulo, Rolando Boldrin formou a dupla infantil Boy e Formiga com o irmão Leili. Foi sapateiro, garçom de beira de estrada, frentista, carregador, ator de circo, figurante de televisão e cantor. Nos anos 1960, integrou os grupos de teatro Oficina e Arena. Em 1961 teve o samba "Papéis velhos", parceria com Geraldo Vietri, gravada pela mulher Lurdinha Pereira em disco e engatou a carreira musical.

Rolando Boldrin, apresentador e artista
Rolando Boldrin no 'Sr. Brasil' - Divulgação TV Cultura

No III Festival Internacional da Canção da TV Globo, de 1968, Boldrin cantou o samba "Onde anda Iolanda", que foi bem recebido. Afinado à MPB, Boldrin era da mesma geração de compositores interioranos que se aproximaram da música rural já na vida adulta, como seu amigo Renato Teixeira, com quem gravou disco em 2005. O primeiro LP solo, "O cantadô", de 1974, apostava no flerte da MPB com a música caipira. Boldrin dividia seu tempo de músico com o emprego de ator, e se destacou em várias novelas nos anos 1970 em diversas redes de TV. Mas foi como divulgador da cultura popular que Boldrin marcou época.

Em 1981, ele criou o programa "Som Brasil" nas manhãs de domingo globais, juntando MPB e tradição musical caipira. Boldrin contava causos, dançava, exibia peças teatrais e pequenos documentários, recebia convidados e cantava com eles a saudade do sertão. O cenário era de uma venda de beira de estrada nos mínimos detalhes. Havia um armarinho, gavetas, sacas de arroz e fubá e prateleiras de cachaça e lamparinas.

O programa de Boldrin foi fundamental para a carreira de diversos caipiras. Ele resgatou do esquecimento o cantor Ranchinho, cujo parceiro Alvarenga havia morrido, e deu-lhe um quadro fixo no programa. Pena Branca e Xavantinho também conheceram o sucesso através do "Som Brasil". Em 1982, Boldrin produziu o segundo LP dos mineiros, intitulado "Uma dupla brasileira", que continha "Cio da terra", o maior sucesso dos irmãos.

Outro que se destacou no programa foi Almir Sater. Depois de participar do disco "Som Brasil", organizado por Boldrin, ele lançou o primeiro LP solo, aos 24 anos.

Em 1982, o "Som Brasil" conquistou o prêmio de melhor programa de TV, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), e foi eleito destaque rural pela Associação Brasileira de Marketing. Com boa audiência, Rolando Boldrin recebeu os títulos de cidadão carioca, cidadão paulistano e de personalidade do ano.

O apresentador se via como um defensor da tradição caipira e se impacientava com o crescente sucesso da música sertaneja nos anos 1970. Afirmava: "O que impera na nossa música é uma influência descarada da música americana, mexicana e paraguaia. Vê-se duplas sertanejas cantando uma miscelânea que nem se entende. E a nossa música é tão rica..."

Boldrin era um militante da linha folclorista, articulada pela cantora Inezita Barroso nos anos 1950. Todos eles são herdeiros de Câmara Cascudo, Ariano Suassuna e Antonio Cândido, folcloristas que tiveram em Mário de Andrade um pai fundador. Para eles, era no campo, e não na cidade, onde estavam as raízes da "alma" brasileira.

A postura intransigente trouxe problemas à produção do programa "Som Brasil". Na semana de estreia, a cantora Diana Pequeno pediu amplificadores de guitarra, simplesmente negados pela produção. O cantor Sérgio Reis foi barrado por Boldrin, pois ele "teimava" em se apresentar "com chapéu de caubói texano", segundo palavras do próprio apresentador. Em sua autobiografia, Boldrin escreveu: "A música caipira é a música do caboclo, purinha, sem influência nenhuma. Essa música sertaneja de alto consumo eu não considero música brasileira porque é produto de importação."

Esse filtro estético radical garantia palco a artistas caipiras e da MPB como Milton Nascimento, Egberto Gismonti, Patativa do Assaré, Elomar, Almir Sater e Renato Teixeira, Quarteto em Cy e Mineiro & Manduzinho, além dos velhos caipiras. Os sertanejos de grande sucesso popular, como Milionário & José Rico, Leo Canhoto & Robertinho, Pedro Bento & Zé da Estrada, Trio Parada Dura, Chitãozinho & Xororó, João Mineiro & Marciano, Matogrosso & Mathias ficavam de fora.

Com o sucesso do programa, Rolando Boldrin sonhou alto e entrou numa queda de braço com os executivos da Globo para mudar o "Som Brasil" para um horário nobre semanal. Ele perdeu a batalha e o comando da atração, que passou a ser apresentada por Lima Duarte a partir de 1984 e até 1989.

A vida de Boldrin seguiu os ventos de sua militância. Seus discos faziam a linha folclórica, com temas tradicionais da música caipira. Um dos seus maiores sucessos foi "Vide vida marvada", de 1981: "É que a viola fala alto no meu peito humano/ E toda mágoa é um mistério fora desse plano". Enquanto a música sertaneja explodia em todo o Brasil, ele levou seu programa a outras emissoras que aceitavam seu rigor caipira. Assim apresentou o "Empório Brasileiro" (TV Bandeirantes), "Empório Brasil" (SBT) "Estação Brasil" (CNT) e desde 2005 o "Sr. Brasil", na TV Cultura.

Diferentemente do programa de Inezita Barroso, "Viola, minha viola", também da TV Cultura, que durou de 1980 até a morte da cantora em 2015, o programa de Boldrin aceitava a mistura com a MPB. Mas não a linha tropicalista, adepta ao rock e às incorporações estrangeiras. Guitarras e instrumentos eletrônicos jamais pisaram no seu palco.

Boldrin tornou-se um personagem de si mesmo. Contador de causos de raro talento, viveu a disseminar a idealização do homem do campo com cores nacionalistas. Era um homem apegado ao passado que cada vez menos encontrava sentido num mundo globalizado como o que vivemos. O Brasil que saia de sua gaveta era um país mítico e puro que talvez de fato nunca tenha existido.

Em 2015, quando publiquei meu livro sobre música caipira e sertaneja, pedi a Boldrin autorização para que ele aparecesse na capa. Quando soube que estaria ao lado de César Menotti e Fabiano e Milionário e José Rico ele disse que de jeito nenhum autorizava o uso de sua imagem. Uma pena. Boldrin é parte fundamental da história da música rural brasileira, o último dos grandes folcloristas caipiras da linha do nacional-popular de nossa cultura.

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