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A verdadeira história de 'Peter Chicoteado', cuja foto mudou percepção sobre escravidão nos EUA

'Emancipation: Uma História de Liberdade', que chegou aos cinemas e ao streaming, conta a história da jornada do escravo que virou soldado

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Foto de 'Peter Chicoteado'.
Emancipation — Uma História de Liberdade é baseado na história de 'Peter Chicoteado' - Smith Collection/Gado/Getty Images

A fotografia de um homem escravizado que sobreviveu a uma surra que deixou seu corpo mutilado e com cicatrizes ajudou a revelar a brutalidade da escravidão americana. O ator Will Smith estrela "Emancipation: Uma História de Liberdade", que chegou aos cinemas e ao streaming, um filme que conta a história de "Peter Chicoteado" e sua jornada de escravo a soldado.

Embora sua pele tenha sido esfolada dezenas de vezes pelas agressões e depois dolorosamente cicatrizada, Gordon, um escravo fugitivo, posou de forma desafiadora para um retrato em 1863.

No auge da Guerra Civil dos Estados Unidos —quando os fatos sobre os horrores da escravidão eram frequentemente denunciados como propaganda falsa— a horrível fotografia revelou a verdade inegável.

Os abolicionistas apelidaram o homem da foto de "Whipped Peter" ("Peter Chicoteado", em português) e, embora os historiadores tenham debatido seu nome verdadeiro, há poucas dúvidas sobre o impacto que sua imagem teve na psique americana.

A fotografia mostrava que "estas eram pessoas reais com experiências reais. Foi tirada para apresentar uma narrativa visual do horror da escravidão durante a Guerra Civil", diz Barbara Krauthamer, uma importante historiadora da escravidão e emancipação dos EUA e reitora da Escola de Humanidades e Belas Artes na Universidade de Massachusetts, em Amherst.

"O que muitas vezes se perde é o foco no próprio homem - a história desse homem que entende que a Guerra Civil é uma oportunidade de literalmente tomar posse de seu corpo e de sua vida."

O filme de Will Smith, "Emancipation: Uma História de Liberdade", é inspirado na história real de Gordon/"Peter Chicoteado" e dirigido por Antoine Fuqua (de "O Protetor e Invasão à Casa Branca"). Smith disse a jornalistas no lançamento do filme que espera que o longa revele o poder do espírito humano.

"Este não é outro filme de escravos. Este é um filme de liberdade", disse Smith. "Acho que é uma história que todos nós precisamos ver, ouvir e sentir."

O filme é visto como um possível recomeço para o ator americano, que foi suspenso do Oscar por 10 anos após dar um tapa no rosto de Chris Rock ao vivo. O comediante, que apresentava a cerimônia, havia feito uma piada sobre a aparência da mulher de Smith, Jada, que sofre de alopecia (calvície) e tinha os cabelos raspados.

Will Smith na estreia de 'Emancipation' - Isabel Infantes/AFP

Uma fuga angustiante

Em abril de 1863, poucos meses depois que os escravos foram declarados livres pela Proclamação de Emancipação, de Abraham Lincoln (1809-1865), Gordon chegou a um acampamento de soldados da União nos arredores de Baton Rouge, no Estado da Louisiana.

Exausto, quase morrendo de fome e vestindo apenas trapos, Gordon desabou ao ver os soldados negros libertos que lutavam para acabar com a escravidão na América, de acordo com uma coluna de dezembro de 1863 no jornal New-York Daily Tribune. Ele imediatamente pediu para se alistar.

Durante um exame médico, Gordon disse aos policiais que decidiu fugir depois de sobreviver a uma surra brutal que o deixou à beira da morte e em coma por dois meses. Após 10 dias sendo perseguido pelos pântanos e bayous da Louisiana por cães de caça e caçadores de escravos, Gordon finalmente chegou ao acampamento da União onde obteve sua tão sonhada liberdade.

Ele então revelou suas "costas açoitadas" como prova. Fotógrafos incorporados aos soldados tiraram a agora infame foto de Gordon posado, de costas nuas e com a mão no quadril.

O Tribune observa que a visão de seu corpo mutilado "enviou um arrepio de horror a todos os brancos presentes, mas os poucos negros que estavam esperando... prestaram pouca atenção ao triste espetáculo, cenas tão terríveis eram dolorosamente familiares a todos".

De acordo com a Galeria Nacional de Arte, um jornalista de Nova York observou que a imagem deveria ser "multiplicada por 100 mil e espalhada pelos Estados Unidos".

E foi exatamente isso que aconteceu.

Horrores da escravidão viralizam

O retrato de Gordon foi tirado em uma época em que o país debatia se o esforço de guerra valia a pena e se homens negros - escravizados ou libertos - deveriam ter permissão para se alistar como soldados.

Em seu livro, "Envisioning Emancipation: Black Americans and the End of Slavery" ("Imaginando a emancipação: negros americanos e o fim da escravidão", em tradução livre), Krauthamer e sua co-autora, a historiadora da fotografia Deborah Willis, descrevem como os avanços na fotografia permitiram que a imagem de Gordon fosse reproduzida de forma acessível em pequenos cartões de notas e amplamente compartilhada.

Abolicionistas venderam reimpressões de sua imagem para arrecadar dinheiro para seus esforços. Mas, diz Krauthamer, as reações ao retrato foram variadas.

"Era totalmente comum as pessoas dizerem: é falso, não acredito", diz ela. "Os brancos não achavam que os negros eram testemunhas confiáveis, mesmo de suas próprias experiências."

Em 4 de julho de 1863, a popular revista Harper's Weekly reimprimiu uma gravura de Gordon / "Peter Chicoteado" ao lado de imagens de Gordon em uniforme da União. O artigo anexo tinha o título "Um negro típico" e descrevia a angustiante fuga de Gordon da escravidão e seu valente registro de serviço no Exército da União.

Mesmo para um artigo antiescravista, os historiadores notaram os tons de racismo, já que o autor do artigo se esforçara para descrever a "inteligência e energia incomuns" de Gordon.

O legado de 'Peter Chicoteado'

A Guerra Civil foi um dos primeiros conflitos a ser documentado através da fotografia - mas muito poucas fotos capturam os horrores e a brutalidade da escravidão tão claramente quanto a imagem de "Peter Chicoteado".

Embora suas imagens tenham se tornado uma ferramenta eficaz para mensagens e propaganda antiescravidão, Krauthamer diz que muito pouco se sabe sobre a vida e o legado de Gordon depois de ingressar no Exército da União.

"Há um argumento a ser feito, que [o retrato] era apenas outra maneira de objetivar um corpo negro", diz ela, acrescentando que as discussões modernas sobre o retrato de Gordon ressaltam o poder da fotografia para documentar a verdade.

Maime, mãe de Emmett Till, caindo de joelhos ao receber o corpo de seu filho assassinado.
Maime, mãe de Emmett Till, caindo de joelhos ao receber o corpo de seu filho assassinado - Getty Images

Menos de um século depois que o retrato de Gordon foi tirado, a mãe de Emmett Till, Maime, realizou um funeral de caixão aberto depois que seu filho foi brutalmente sequestrado, torturado e linchado porque, em suas palavras: "Queria que o mundo visse o que eles fizeram com meu bebê ."

Essa foto do corpo mutilado de Till também chocou a consciência americana e revelou o duradouro legado de racismo nos Estados Unidos.

Krauthamer diz que, como historiadora, tenta centralizar não apenas a dor, mas também a alegria da experiência negra americana em seu trabalho.

"Acho que grande parte dos meus estudos se concentrou em 'qual é a história verdadeira?' E eu só quero saber como era a vida dele? Quem ele amava? O que ele esperava alcançar?"

"Minha esperança é que o filme de Will Smith e esta fotografia abram um portal para isso - nossa capacidade de imaginar essa história e essa humanidade", acrescentou ela.

Este texto foi originalmente publicado aqui.

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