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'A Cabeça do Pai' mostra a fragilidade da vida a partir de corpo em pane

Primeiro romance da pesquisadora Denise Sant'Anna é coerente com seus estudos sobre a relação de biologia e história

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Rinaldo Gama

A Cabeça do Pai

  • Preço R$ 54,90 (128 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Denise Sant'Anna
  • Editora Todavia

"Inventar um sentido para a vida não é tarefa para o corpo biológico", diz, a certa altura, o romance "A Cabeça do Pai", que marca a estreia da historiadora Denise Sant’Anna no gênero. Apesar disso, é a partir dele que ela se mobiliza naquela direção, dando corpo –com o perdão da redundância– a uma narrativa que reflete sobre as fragilidades humanas.

denise sant'anna
A historiadora Denise Sant'Anna, autora do romance 'A Cabeça do Pai' - Divulgação

O uso da expressão no plural se justifica. Em primeiro lugar porque a chamada "casa do ser" corre sempre o risco de desmoronar de uma hora para outra e está sujeita a panes de toda ordem —como o acidente vascular cerebral que logo no início acomete o pai mencionado no título da obra.

O outro motivo é que na trama, ao desamparo físico, irá se somar a precariedade existencial, evidenciada em uma série de histórias que não se restringem ao pai, à mãe ou à narradora –estendem-se para seus amigos, meros conhecidos e até desconhecidos.

O desassossego parte da vulnerabilidade do corpo em si: até a véspera da emergência médica, o pai tinha "todos os parafusos na cabeça", enquanto a esposa com quem estava havia 60 anos já portava Alzheimer.

Em pouco tempo, essa mulher apagará também e será entubada no mesmo hospital para onde o marido foi levado após o mal que o derrubara –com um parafuso de verdade escondido na mão esquerda– na manhã em que a filha tinha ido visitar os dois "para mostrar como era fácil usar o WhatsApp".

Esses relatos vêm à tona, em vários momentos, por meio da "invocação" do pai hospitalizado. Um exemplo: "Quando perguntei ao pai se ele queria os óculos para ver melhor as fotografias que eu lhe mostrava, ele pediu para chamar a Lavínia. Ela foi nossa vizinha..."

Em outras oportunidades, no entanto, as narrativas surgem sem essa intermediação: "Certa vez soube de uma enfermeira que quebrou o protocolo durante o banho de uma paciente com cerca de 75 anos, internada em um grande hospital".

A propósito, sublinhe-se que alguns dos trechos mais notáveis do livro abordam instituições e profissionais da saúde em sua forma de interagir com os doentes.

"A cabeça do pai saiu das minhas mãos, fiquei sozinha e trêmula na entrada daquele calabouço (...), enquanto lá dentro ele sofria uma espécie de abate." E adiante: "Os médicos de plantão passavam rapidamente para ver os pacientes (...). Costumavam ser atenciosos, examinavam as máquinas ligadas ao pai com a seriedade de um mecânico diante de um carburador".

Essas desconcertantes e irônicas referências se apresentam para o leitor em capítulos que levam no nome alusões ao corpo –"Cabeça" (claro), "Dentes", "Olhos", "Ossos" etc.

Tal concepção guarda coerência com a trajetória acadêmica da autora. Há décadas Sant’Anna se dedica ao estudo do corpo humano, este "lugar da biologia, das expressões psicológicas, dos receios e fantasmas culturais (...), uma realidade multifacetada e, sobretudo, um objeto histórico".

A definição, uma espécie de síntese de "A Cabeça do Pai", está na introdução de "Políticas do Corpo", de 1995, volume organizado pela autora, professora da PUC de São Paulo, no qual incluiu o ensaio "Cuidados de si e embelezamento feminino". O estudo continha "algumas ideias" da tese de doutorado da agora romancista, defendida em 1994 na Universidade de Paris 7 –por seu turno, base de "História da Beleza no Brasil", publicado em 2014.

Antes dessa obra, Denise tinha lançado "Corpos de Passagem" em 2001, em que aproxima pacientes internados de passageiros de um avião –comparação retomada em "Órgãos", o antepenúltimo capítulo de seu romance.

Nele, a autora pontua de novo a separação entre o material e o subjetivo: "É provável que em grande parte dos hospitais um coração seja um órgão. O cérebro seja outro órgão. Afinal, quando é preciso salvar vidas, não é possível filosofar".

Mas há esta ponderação: "Já os acompanhantes, os familiares dos pacientes (...), bem que podiam ter direito a alguma filosofia quando estivessem dentro daquele condensado de infortúnios".

De certo modo, se assim fosse, seria como se o corpo biológico doente desse sentido à vida dos sãos –e, com isso, ganhasse, ele próprio, a sua metafísica.

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