Assim como o terceiro governo de Lula não será igual ao primeiro e ao segundo, a postura de William Bonner, tida como uma personificação da linha editorial da TV Globo, virá diferente. O bom humor do âncora durante a transmissão da posse deste 1º de janeiro nem parecia vir do mesmo titular de um Jornal Nacional implacável com o PT na cobertura do Mensalão, da Lava-Jato e do impeachment de Dilma Rousseff.
Enquanto Renata Lo Prete exibia mais tecnicidade e apresentava informações objetivas, Bonner dava ênfase à plasticidade e à beleza das imagens da "grande festa da democracia", dizendo sem medo de ser feliz que "até as nuvens do céu de Brasília estão mais bonitas".
Vamos combinar que as cenas de celebração da multidão, com espectadores que disputaram palmo a palmo um espaço para ter uma boa visão do discurso e dos shows, são um prato cheio para a audiência da TV aberta. Era preciso aproveitar o embalo. Fechar a cara diante daquelas imagens seria uma insanidade editorial e comercial.
Na TV paga, o público quer mais do que alguém que jogue para a torcida, daí vêm os investimentos em times maiores de comentaristas. Mas, até na GloboNews, o tom entusiasta não se acanhou. Miriam Leitão, outrora tão crítica ao PT e a Lula, evidenciava claramente seu alívio com a troca de presidentes. Por pior que fossem suas impressões sobre o petista no passado, o antagonismo com o bolsonarismo ressignificou tudo.
Esse quadro, no entanto, está longe de significar que a Globo será mais fofa com Lula do que foi no passado, ao menos no sentido de cobrar ações e resultados de quem responde pelo poder público.
É fato que, em 2018, os telejornais da casa foram praticamente acríticos à prisão de Lula por ordem do então juiz Sergio Moro, que costumava ter suas decisões estampadas por boa parte da imprensa sem questionamentos.
Na Globo, Chico Pinheiro noticiou a prisão em uma edição de sábado do Jornal Nacional e foi repreendido internamente por um áudio de WhatsApp vazado em que defendia a arbitrariedade da decisão de Moro.
Dispensado pela Globo no ano passado, Pinheiro viria a compor o grupo de consultores que auxiliou Lula em sua primeira entrevista ao Jornal Nacional como candidato. Ao abrir a sabatina, Bonner fez questão de iniciar a conversa com uma premissa —"o senhor não deve nada à Justiça".
Para quem entendeu e se lembra que a Globo foi injusta com Lula durante todo o processo que levou à sua prisão, a declaração do apresentador soou como um pedido de desculpas da emissora ao então candidato do PT.
Àquela altura da sabatina no Jornal Nacional, Lula já mostrava ser a única opção viável para derrotar Jair Bolsonaro, com quem a Globo teve péssimas relações. Mas é preciso lembrar que, também com Bolsonaro, a emissora não exibiu enfrentamento nem oposição logo de cara. As transmissões de Brasília do 1º de janeiro de 2019 mereceram igualmente menções à "grande festa da democracia".
Historicamente, a Globo não é de partir para o enfrentamento, fama que a persegue desde a ditadura militar, mas tampouco é de se submeter a desmandos e ameaças, como logo acabou acontecendo com Bolsonaro, que não demoraria a ameaçar a emissora, dizendo que não renovaria sua concessão para ir ao ar e que reduzira a verba publicitária destinada ao canal.
O primeiro round da guerra entre Bolsonaro e Globo, no entanto, viria só quase 11 meses após a posse. Foi na ocasião em que a emissora noticiou que o porteiro do condomínio onde Bolsonaro morava, no Rio de Janeiro, atestava que ele, ainda deputado, havia liberado a entrada de Élcio de Queiroz, preso pelo assassinato de Marielle Franco, no dia do assassinato da ex-vereadora.
Bolsonaro disparou a xingar a Globo. Meses depois, a polícia desmentiria a versão do porteiro. Em abril de 2020, quando a emissora mais uma vez abraçou Moro, que tinha deixado o governo atirando contra Bolsonaro, as relações azedaram de vez. Ao longo de quatro anos, Bolsonaro deu entrevistas exclusivas à CNN Brasil, ao SBT, à Record, à Band e principalmente à Jovem Pan, mas nunca à Globo.
A despeito do momento de lua-de-mel normalmente alimentado pela emissora em todo início de governo, está claro que o contexto pós-Bolsonaro desperta nos profissionais da casa e em sua linha editorial um espírito de trégua, de paz e de que dias melhores virão.
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