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Artes Cênicas

Círculo de Atores faz boa versão de Bernard Shaw, mas perde em adoração

Quinta produção do grupo baseada no autor, 'O Dilema do Médico' peca ao tornar debate social em sentimentalismo

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O Dilema do Médico

É difícil sair do espetáculo "O Dilema do Médico" sem se impressionar com o conjunto das atuações. São atores e atrizes que se afastam dos vícios exibicionistas da profissão e atuam coletivamente, se escutam em cena, compreendem o que dizem e a importância dos gestos na construção do papel. Parecem recursos óbvios desta velha arte, mas não são.

O coração da peça, do grupo Círculo de Atores, pulsa todo em torno da interpretação. É uma marca forte do grupo, como também da diretora Clara Carvalho, que carrega a experiência de vários anos de trabalho como atriz junto ao Grupo Tapa, de São Paulo.

Bruna Guerin em cena do peça 'O Dilema do Médico', de Bernard Shaw, em montagem dirigida por Clara Carvalho - Ronaldo Gutierrez/ Divulgação

Desde a criação do Círculo de Atores, em 2013, o autor irlandês Bernard Shaw é o principal objeto artístico do grupo. "O Dilema do Médico" é a quinta produção a partir de obras do autor. Escrito em 1906, o texto coloca um cena um debate que adquiriu atualidade: o dilema do título se refere a escolha que o médico deve fazer quando se depara com mais doentes do que recursos e é obrigado a decidir quem salvar.

Durante a pandemia, todos se lembram, profissionais de saúde do mundo todo também viveram momentos nos quais foram obrigados a escolher para qual doente forneceriam um respirador e qual seria deixado para trás.

Shaw, contudo, não apresenta apenas os aspectos filosóficos da questão. Seus personagens não são o que se pode chamar de paradigmas íntegros da medicina. São médicos oportunistas, charlatães, ególatras e carniceiros; sempre ávidos para transformar seus —duvidosos— conhecimentos no ofício de Hipócrates em ganhos monetários ou fama. Um dos personagens enriqueceu ao colocar um letreiro em seu consultório dizendo "cura garantida", embora sempre receite um placebo qualquer; outro fez fortuna fazendo cirurgias inúteis.

Vemos a prática da medicina movida pela vaidade, pela cobiça e por procedimentos aleatórios. Na peça, os doutores são quase todos uns palermas preocupados sempre com eles mesmos. O debate de fundo trágico na peça escrita por Bernard Shaw convive, portanto, com uma raivosa sátira da profissão.

A montagem brasileira consegue lidar muito bem com essa duplicidade. As cenas deixam evidente a dimensão profunda do dilema, sem desativar o tratamento satírico que o autor dá aos médicos e à mercantilização da medicina.

Tudo, portanto, funciona bem. Atuações, rigor técnico da montagem, comicidade, compreensão da obra. O espetáculo é ótimo. Mesmo assim, há algo que o impede de ir além. O debate e a sátira da peça são atuais, é verdade. Dizer isso, contudo, é diferente de dizer que a peça escrita há mais de cem anos é uma obra universal, um clássico que dialoga com todo e qualquer tempo. Talvez sequer existam obras assim. O potencial crítico que há no texto de Shaw perde força justamente na reverência desmedida que o grupo presta a ele.

É verdade que o debate ético-filosófico e a sátira da medicina fazem pensar sobre a nossa sociedade atual, mas, em contrapartida, o idealismo do artista amoral Louis Dubedat, um dos candidatos a receber o tratamento contra a tuberculose na peça, soa ingênuo e fora de época.

A montagem abraça a visão romântica e quase religiosa que vê a arte como um espécie de categoria universal, eterna, pulsão criadora que faz a ciência "vergar os joelhos", quase como um tipo de revelação. Também aceita muito rapidamente os traços melodramáticos que rondam a peça de Shaw, transformando o debate social em sentimentalidades individuais.

Existe sempre um paradoxo quando se monta um texto antigo —para se aproximar de sua força é necessário se afastar dele, isto é, criticar, desconfiar, reposicionar historicamente ou mesmo reescrever suas linhas. É esta atitude mais livre e autoral que ainda deixa a desejar no trabalho do Círculo de Atores e na direção de Clara Carvalho. A sublimação do que é histórico funciona no museu, mas quase nunca no teatro. Mesmo que o palco inspire ares antigo, precisa sempre expirar no agora.

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