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'Decisão de Partir' vai fundo no maneirismo, é irregular, mas funciona

Filme de Park Chan-Wook, diretor de 'Oldboy', sobre detetive atrás de morte misteriosa abusa de confusão proposital

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Decisão de Partir

  • Quando Estreia na quinta (5) nos cinemas
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Park Hae-il, Tang Wei, Lee Jung-hyun.
  • Produção Coreia do Sul, 2022
  • Direção Park Chan-wook

Quando Sidney J. Furie filmou sob o ponto de vista da espora de uma bota de Marlon Brando em "Sangue em Sonora" —mais conhecido pelo título original, "The Appaloosa"—, de 1966, não imaginava que 56 anos depois um diretor sul-coreano chamado Park Chan-Wook filmaria, em "Decisão de Partir", uma formiga vista de dentro do globo ocular de um morto.

O artifício é típico do maneirismo cinematográfico, que teve seu auge nos anos 1970 e 1980, e que nunca adormeceu de todo —servindo até, equivocadamente, para menções deletérias, como se fosse um grande pecado ser maneirista.

Tang Wei e Park Hae-Il em cena do filme 'Decisão de Partir', de Park Chan-Wook - Divulgação

No maneirismo, não há obrigação de funcionalidade entre o procedimento escolhido e a trama narrada. Mas se há alguma explicação para os efeitos estranhos que vemos na tela, o filme pode se tornar mais fascinante aos olhos de um público mais amplo. Ao menos os "senhores verossímeis" de que falava Hitchcock reclamam menos.

Em "Sangue em Sonora", os pontos de vista bizarros da câmera refletem a posição deslocada do herói dentro do filme, mas também do gênero, o western, naquele momento do cinema americano.

Em "Decisão de Partir", toda a estranheza remete à necessidade de ajuste no olhar. Daí a profusão de binóculos, colírios, reflexos, monitores, telas diversas, sobreposições de imagens como modo de ajustar a percepção e outros truques visuais que o filme emprega sem parcimônia.

Temos um detetive que investiga o possível assassinato de um homem possessivo, daqueles que marcam todos os seus bens, dado ao hobby do alpinismo. Num dos golpes do destino da narrativa, o herói se apaixona pela principal suspeita, uma imigrante chinesa que era casada com a vítima e tinha a marca das iniciais dele em seu corpo.

A trama é filmada sob a forma de um enigma. Para decifrar a charada, o protagonista precisa estar na mesma dimensão intelectual que o filme opera —por associações de imagens trabalhadas sem a hierarquização habitual do tempo. Presente e passado se misturam como forma de mostrar que casos antigos podem elucidar os mais novos, e vice-versa.

Na verdade, o filme apresenta cacos de cenas que até podem estar, eventualmente, numa cronologia normal, por mais estranho que possa parecer. Adicionados às evidentes voltas no tempo, esses cacos ajudam a confundir o espectador.

A confusão é proposital, mas por vezes ultrapassa a mera vontade de narrar de modo diferente e se torna uma brincadeira inconsequente. É como se o diretor se vangloriasse de sua própria esperteza. Por outro lado, tem momentos em que a informação é excessiva, como se houvesse uma insegurança de perder o espectador. Um problema deriva do outro.

Um artifício que por vezes parece um tanto tolo é o de pôr o detetive dentro da cena imaginada por ele. O efeito é muito usado na série "Mistérios do Detetive Murdoch", com resultados semelhantes. Somado ao maneirismo habitual de Park Chan-Wook, embora aqui mais comportado que em "Oldboy" —seu longa mais famoso— esse artifício funciona bem no começo, mas depois cansa um pouco.

"Decisão de Partir" é também um filme de alturas. Para entender melhor uma cena de crime é preciso escalar uma montanha rochosa difícil. Para perseguir suspeitos, é necessário correr por ruas íngremes e escadarias desanimadoras. Nos terraços dos prédios, revelações são feitas. Ecos visuais de "Um Corpo que Cai", obra-prima de Hitchcock, vêm à mente.

Ao mesmo tempo e de forma espelhada, é um filme de profundidades. As gravações protegidas por senhas, a neblina de uma cidade litorânea, a tradução simultânea do chinês para o coreano pelo celular e as diversas outras camadas que envolvem detetive e os demais personagens espelham a profundidade do mar e seus segredos.

Por sua ambição desmedida, é natural que o diretor não dê conta de tudo que levanta. Mas é inegável que ele soube iniciar e terminar muito bem o seu filme, de modo que a impressão geral é de triunfo.

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