'Pacifiction' foge dos orgasmos para ecoar a tragédia de Marlon Brando

Sucessor de 'Liberté', longa que não economizava no sexo e foi premiado em Cannes, é destaque na Mostra de Cinema de SP

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Cannes (França)

Longe dos orgasmos e da nudez de seu último filme, longe até geográfica e historicamente –foi para onde Albert Serra decidiu ir em "Pacifiction". Se o antecessor, "Liberté", chocou pelo sexo escancarado e sádico no retrato da corte de Luís 16, o novo filme decidiu falar de um presente mais recatado, na distante Polinésia Francesa.

Não que ele não ecoe temas passados e um certo erotismo, mas "Pacifiction", da seleção principal do último Festival de Cannes e em exibição na Mostra de Cinema de São Paulo, pode ser considerado muito mais digerível que "Liberté", que não obedecia a uma estrutura muito óbvia –e, claro, soava como um ataque vil aos mais moralistas.

Cartaz do filme "Pacifiction", de Albert Serra
Benoît Magimel em detalhe do cartaz de 'Pacifiction', dirigido por Albert Serra - Divulgação

Em "Pacifiction", que junta as palavras inglesas para Pacífico e ficção, acompanhamos alguns dias na vida do alto comissário da Polinésia Francesa, o representante do governo francês no território ultramarino, localizado entre a Oceania e a América do Sul e ainda sob controle dos europeus.

Vivido por Benoît Magimel, premiado em Cannes por encarnar o aluno apaixonado de "A Professora de Piano" há duas décadas, o oficial é uma espécie de bon vivant, que passeia pelos cenários paradisíacos da ilha em que vive sempre elegante, com os ternos claros e as camisas floridas ilustrando seu ar despreocupado.

Não há, no entanto, motivo para tranquilidade. Seu cargo vive em meio a um impasse enorme. De um lado, a população local quer mais autonomia, quer depender menos das ordens importadas da Europa. Do outro, Paris flerta com a ideia de voltar a usar o paraíso ultramarino como laboratório para testes nucleares –motivo de pavor para aqueles que levam uma vida tão pacata e integrada à natureza.

Serra, no último dia do Festival de Cannes, disse a este jornal, no entanto, que "não tem opinião para nada" quando faz seus filmes. Ele sabia que tensões que remetem ao colonialismo e imperialismo apareceriam, mas que sua preocupação em "Pacifiction" era criar um cenário de "choque, o mais caótico possível", para contrastar com a calmaria da ilha.

"Eu gosto de provocar, criar uma fantasia. Não tenho nada a dizer, não tenho as soluções para os problemas do mundo –ainda bem, porque não é meu trabalho resolvê-los. Meu objetivo enquanto cineasta é criar imagens originais e interessantes", afirma.

Cena do filme "Liberté", de Albert Serra
Cena do filme 'Liberté', de Albert Serra - Divulgação

Foi o que tentou fazer com "Liberté", seduzindo o espectador até um emaranhado de imagens de órgãos sexuais e rostos franzidos por orgasmos, numa sinfonia de gemidos que muita gente não entendeu, mas ainda assim garantiu ao catalão o prêmio da mostra Um Certo Olhar, no Festival de Cannes de 2019.

E se em "Liberté" ele retratou os excessos de uma corte europeia que enriqueceu ao explorar colônias distantes, em "Pacifiction" como essa herança persiste, mesmo que por acidente, como sugere que aconteceu.

A ideia para o filme, também, ecoa a relação tempestuosa entre os dois mundos. Serra se inspirou nas histórias de Tarita Teriipaia, atriz da Polinésia Francesa que foi casada com ninguém menos que Marlon Brando. O poderoso chefão, aliás, comprou uma ilha privativa no arquipélago, até hoje controlada pelo seu espólio.

Sua primeira visita foi durante as filmagens de "O Grande Motim", de 1962, mas Brando logo se apaixonou pelo local, que o fazia se sentir perto do paraíso, e por Teriipaia. Do céu, no entanto, o casal mergulhou no inferno. Ao menos é a leitura que Serra faz e que tentou traduzir em "Pacifiction".

"A Tarita dizia que ela morava num mundo puro, até que os americanos chegaram para fazer o filme e corromperam aquilo, trouxeram consequências trágicas consigo", afirma o cineasta. "Essa ideia de um paraíso corrompido me motivou, esse questionamento se aquele lugar foi estragado de alguma forma."

Fruto daquela união entre o glamour hollywoodiano e a espiritualidade polinésia, Cheyenne Brando, filha do ator com Teriipaia, levou uma vida pautada por tragédias. Ao mesmo tempo em que iniciava sua carreira de modelo, começou também a usar drogas. Em 1989, ela sofreu um grave acidente de carro que pôs fim às caminhadas pelas passarelas –precisou fazer uma série de cirurgias de reconstrução facial, o que eventualmente causou uma depressão severa.

No ano seguinte, seu meio-irmão matou seu marido, filho de um integrante da assembleia legislativa polinésia. Christian Brando alegou que o tiro foi acidental, que ele confrontou o cunhado depois de ouvir da irmã que ele batia nela. Ela fugiu para não ter que testemunhar e, meses depois, recebeu um diagnóstico de esquizofrenia.

Cheyenne viveu os últimos dias entre internações em clínicas de reabilitação e em hospitais psiquiátricos, até cometer suicídio aos 25 anos de idade.

A trama de "Pacifiction" em nada remete a essa narrativa trágica, mas no fundo, defende Serra, trabalha com as mesmas tensões e ambiguidades que marcaram a vida de Tarita Teriipaia, que hoje ainda mora em sua terra natal.

Marcado por belas imagens de aspecto granulado e saturação elevada, "Pacifiction" captura bem a ideia de paraíso, embora seja necessário um pouco de paciência até que a tormenta chegue às ilhas. O longa tem quase três horas de calmaria que, acredite se quiser, Serra decantou de impressionantes 540 horas de filmagens.

"Foi o método que criei para registrar a ambiguidade que eu queria. Mas sim, consome muito tempo e, sinceramente, eu não sei se estou pronto para fazer isso de novo."

Pacifiction

  • Quando Em cartaz na Mostra de Cinema de SP, neste sábado (29), às 14h, no Espaço Itaú - Frei Caneca, e na segunda (31), às 20h15, no Espaço Itaú - Augusta
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Benoît Magimel, Pahoa Mahagafanau e Sergi López
  • Produção França, Espanha, Alemanha, Portugal, 2022
  • Direção Albert Serra
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