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'Estou Feliz que Minha Mãe Morreu' escancara abusos a ex-atriz mirim

Jennette McCurdy, de 'iCarly', narra carreira em Hollywood que inclui substâncias tóxicas e distúrbios alimentares

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Helen Beltrame-Linné

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergmancenter, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima.

Estou Feliz que Minha Mãe Morreu

  • Preço R$ 59 (320 págs.)
  • Autoria Jennette McCurdy
  • Editora nVersos
  • Tradução Soraya Borges de Freitas

Relatos autobiográficos sobre a infância de estrelas-mirim de Hollywood não são novidade: Shirley Temple, Drew Barrymore, Janet Jackson e Tori Spelling, para citar algumas, já haviam feito sua contribuição ao tema. Mas chega agora ao Brasil uma obra que se destaca no gênero: "Estou Feliz que Minha Mãe Morreu", de Jennette McCurdy.

mulher loira com cara de enfado e mão no rosto
A atriz Jennette McCurdy, que lança 'Estou Feliz que Minha Mãe Morreu' - Instagram/jennettemccurdy

Lançado há alguns meses nos Estados Unidos, o livro fez barulho pelas revelações chocantes sobre a infância e juventude da atriz que se consagrou no imaginário norte-americano pelo sitcom "iCarly", que foi ao ar de 2007 a 2012 pela Nickelodeon, no papel da irreverente Sam, que em seguida deu origem ao spin-off "Sam & Cat", ao lado de Ariana Grande.

Se Drew Barrymore começa seu "Little Girl Lost", de 1990, descrevendo a experiência de ter interpretado a garotinha de "E.T.: O Extraterrestre" aos seis anos como "a melhor época da sua vida", McCurdy escapa do tom nostálgico e rancoroso que costuma ser comum a autobiografias similares.

Ao relembrar sua primeira participação como figurante no set de "Arquivo X", com a mesma idade de Barrymore, McCurdy aponta como melhor memória do longuíssimo dia de filmagem a experiência de ter comido um ovo cozido, que aprendeu a descascar girando em cima da mesa.

A partir daí, serão anos de uma carreira ascendente em Hollywood que vai incluir substâncias tóxicas, distúrbios alimentares e abusos variados por membros da indústria —mas, especialmente, nas mãos de sua mãe.

A abertura do livro, na qual McCurdy conversa com a mãe doente mergulhada num coma, é reveladora do caráter doentio da relação. Além de marcar o estilo pungente e ácido do livro, é uma cena que serve de tira-gosto dos níveis de abuso mental, físico e emocional que aquela jovem sofreu nas mãos da progenitora.

Nascida no seio de uma família mórmon numa cidade pequena da Califórnia, McCurdy cresceu sem amigos, educada em casa e na igreja com os três irmãos, e levou anos para perceber quão disfuncional era sua família.

Especialmente por conta da mãe, Debra, uma mulher desequilibrada e abusiva que fez de sua meta de vida levar a filha caçula, a qualquer custo, ao sucesso em Hollywood —o que incluiu inscrevê-la em 14 aulas de dança por semana para garantir que ela se tornasse boa.

Numa anedota ilustrativa do ambiente familiar, a autora conta que Debra, sobrevivente de um câncer quando a menina tinha dois anos, reunia os filhos de tempos em tempos em volta da televisão para um ritual: assistir a um vídeo onde havia registrado seu período com a doença, como forma de relembrar seu sofrimento e o milagre de estar viva. O medo da perda da mãe pairava no ar da casa, garantindo seu poder de manipulação sobre a família.

Apesar das histórias escabrosas, não se trata aqui de um revolta raivosa contra injustiças sofridas em casa ou numa indústria que é inegavelmente cruel. Apesar do título chamativo, que a autora admite ter sido escolhido por seu potencial de impacto, McCurdy não está simplesmente dizendo que foi abusada.

"Estou Feliz que Minha Mãe Morreu" navega a relação complexa de uma filha com uma mãe abusadora, o que tornaria o relato extremamente doloroso não fosse o estilo de McCurdy. Sincera, bem-humorada e espirituosa, ela escreve de forma simples, em capítulos curtos que são quase vinhetas nas quais demonstra ironia e perspicácia na compreensão de fatos que envolvem violência e controle —de dinheiro, emails e até calorias.

Mas esse distanciamento não veio da noite para o dia: foram quase dez anos de tratamento e análise após a morte da mãe, cujo câncer reincidiu, para que McCurdy fosse capaz de processar os quase 21 anos de relação para, aos 30, publicar o livro de memórias.

A autora escapou assim ao conflito mais comum em autobiografias de denúncia: equilibrar o desejo de confissão e o impacto que revelações podem ter sobre pessoas próximas.

Se alguns optam por escrever a verdade a qualquer custo, pagando o preço em suas relações pessoais, e outros esperem a morte dos envolvidos para escrever, McCurdy tomou uma terceira via, já que foi a morte da mãe que disparou o processo emocional e psicológico que resultaria no livro.

Num tempo que as obras autobiográficas têm assumido o formato de "documentário confessional""Simply Complicated", de Demi Lovato, e "Miss Americana", de Taylor Swift, tendo sido os exemplos mais recentes que alcançaram ótimo público no streaming— a literatura continua sendo muito bem-vinda para narrativas subjetivas em primeira pessoa, especialmente quando é a forma escolhida por aqueles que claramente têm uma voz literária.

Ao relembrar os episódios de sua trajetória sendo fiel ao ponto de vista da criança ou jovem que foi quando os vivenciou, McCurdy revela que tem alma de escritora e coloca o leitor na posição instintiva de tomar o lado do adulto esclarecido que observa uma situação de abuso.

Em entrevistas, a autora se mostra uma mulher articulada e inteligente que parece bem resolvida com sua história, ainda que seja inevitável sentir pena ao observar a tristeza irremediável dos seus olhos. Mas se nada apaga uma infância dessas, é animador saber que ela está escrevendo um romance: "Estou Feliz que Minha Mãe Morreu" é um bom começo para uma carreira literária.

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