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'Nossa Senhora do Nilo' adapta Mukasonga sem compreender Ruanda

Apesar de suscitar boas discussões, filme que culmina no genocídio tutsi não dá dimensão social e íntima do conflito

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Belo Horizonte

Nossa Senhora do Nilo

  • Quando Estreia na quinta (5) nos cinemas
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Amanda Santa Mugabekazi, Albina Sydney Kirenga e Malaika Uwamahoro
  • Produção França, Bélgica, Ruanda, Mônaco, 2019
  • Direção Atiq Rahimi

A obra de Scholastique Mukasonga, escritora ruandesa, é caracterizada por um complexo e violento entrelaçar entre vida e morte.

Em "A Mulher dos Pés Descalços", por exemplo, livro publicado em 2017, Mukasonga escolhe iniciar seu relato descrevendo em detalhes o assassinato da mãe, ocorrido durante o genocídio tutsi de 1994.

Entretanto, para além de narrar a extrema violência que culmina na morte de cerca de 800 mil pessoas, Mukasonga conta nas páginas seguintes o cotidiano de uma vida, as tradições que persistem e o amor por um país que se perdeu.

Cena do filme 'Nossa Senhora do Nilo', filme de Atiq Rahimi que adapta livro da ruandesa Scholastique Mukasonga
Cena do filme 'Nossa Senhora do Nilo', filme de Atiq Rahimi que adapta livro da ruandesa Scholastique Mukasonga - Divulgação

"Nossa Senhora do Nilo", filme do afegão naturalizado francês Atiq Rahimi tenta emular essa complexa relação. A obra é adaptada de um livro homônimo da escritora de 2012, no qual ela, mulher tutsi sobrevivente desse genocídio, conta o prelúdio do massacre ruandês a partir da perspectiva de um grupo de alunas que estuda num internato católico administrado por belgas.

Em meio ao deslumbramento e o choque, o filme, contudo, pouco consegue chegar ao âmago da representação dessa história. Dividido em capítulos que refletem a religiosidade cristã —inocência, sacrilégio e sacrifício, entre outros— o longa adota uma perspectiva interessante para narrar o cotidiano no Instituto Nossa Senhora do Nilo.

Num universo marcadamente feminino, o filme escolhe duplas de garotas e aos poucos as transforma em protagonistas, dando enredo e profundidade a Modesta, papel de Belinda Rubango Simbi, Gloriosa, vivida por Albina Sydney Kirenga, Veronica, papel de Clariella Bizimana, e Virginia, interpretada por Santa Amanda Mugabekazi.

Essa estratégia é apresentada logo no início da obra, durante uma espécie de chamada, quando Rahimi se detém no rosto de cada uma delas à medida que os seus nomes são evocados.

A cena, que aponta para a construção de uma individualidade dessas meninas em meio ao espaço coletivo —e opressor— de um internato, poderia ser melhor aproveitada caso o filme se esforçasse em construir uma narrativa mais fluida entre as histórias contadas.

Entretanto, por tentar abordar os muitos aspectos dessa vida de forma fragmentada, toda a narrativa parece um pouco solta ou passageira demais —e o final, que deveria ser impactante, apenas se torna abrupto.

Cena do filme 'Nossa Senhora do Nilo', filme de Atiq Rahimi que adapta livro da ruandesa Scholastique Mukasonga
Cena do filme 'Nossa Senhora do Nilo', filme de Atiq Rahimi que adapta livro da ruandesa Scholastique Mukasonga - Divulgação

Outro momento ajuda a explicar essa ideia com maior precisão. Localizado numa das nascentes do grande rio Nilo, precursor da humanidade, o Instituto Nossa Senhora do Nilo ganha esse nome justamente por causa de uma imagem milagrosa que teria aparecido nessas águas.

Por isso, aos pés dessa nascente, foi colocada a escultura de uma Nossa Senhora preta, constantemente adorada e preservada pelas alunas. Apesar de negra, Gloriosa e Modesta se incomodam com o aspecto de seu nariz, fino demais para os padrões ruandeses. A primeira, principalmente, decide então consertar o rosto, e convence a segunda a fazer essa reparação.

O que poderia ser uma boa discussão sobre racismo e colonização, para citar uma das questões que o filme suscita, se perde entre outras reflexões igualmente relevantes, como a apresentação da histórica rivalidade entre hutus e tutsis que culmina no massacre ruandês. Entre esses fragmentos, poucas ideias perduram.

Outro exemplo está na figura de Fontenaille, papel de Pascal Greggory, homem branco proprietário de uma terra vizinha que parece interpretar a estereotipada figura do colonizador arrependido. Na produção, soa incômodo o fato de que a tradição de um povo africano seja contada por seus relatos, principalmente quando a narrativa também apresenta a personagem de uma anciã curandeira na região.

Como não há tempo para adentrar individualmente nessas duas histórias, perdemos a possível crítica que poderia ser feita quanto ao apagamento das tradições tutsis e a própria violência da colonização europeia.

Apesar desses aspectos, em dois momentos, o filme se permite uma fuga lúdica e fantasiosa que colabora para a materialização dessas tradições. Produz imagens belas, ressaltando a perda da inocência de suas personagens e a iminência da guerra civil.

Porém, quando o conflito chega, a visualidade da violência parece gratuita, fetichizada. Mais do que contexto, falta um sentimento de identificação que nem a presença de uma cartela final explicativa consegue resolver. E a mencionada relação entre morte e vida, infelizmente, se torna apartada.

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