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'Roupa Suja' faz rir ao triturar a reputação de figuras históricas

Sátira de 1923 sobre personagens da política provoca o riso cerebral que acompanha o bom uso da ironia

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Rinaldo Gama

Roupa Suja (Polêmica Alegre)

  • Preço R$ 59 (200 págs.)
  • Autoria Moacyr Piza
  • Editora Chão

A leitura da nova edição de "Roupa Suja", publicado em 1923 por Moacyr Piza, provoca ao mesmo tempo uma sensação de alento intelectual e de amargor.

Alento: não é preciso ser um pesquisador da área para considerar bem-vindo o retorno à circulação de uma obra que —apesar do importante registro crítico que faz da política brasileira de princípios do século 20— estava esquecida.

Amargor: no livro, Piza se insurge contra vezos do poder que permanecem inabaláveis no país. Ou, no mínimo, ainda o assombram.

mulheres empilhadas em carro de carnaval
Mulheres se empilham em carro durante o Carnaval de 1918 em São Paulo, em imagem que estampa o livro 'Roupa Suja' - Reprodução

Mais: a tragédia que marcou a morte do autor —sobre a qual será inevitável falar aqui— tem elementos que, apesar de devastadores para toda a sociedade, seguem presentes no cotidiano nacional. "A história é uma galeria de quadros onde há poucos originais e muitas cópias", como escreveu o pensador francês Alexis de Tocqueville.

Foi por uma série de razões, "algumas políticas, outras pessoais", conforme atesta no posfácio o historiador Boris Fausto, que Piza decidiu publicar "Roupa Suja", começando "por um fato que, à primeira vista, nos parece miúdo, a ponto de ter sido sepultado".

O fato: em 1922, diante do risco de derrota nas eleições de Capivari, em São Paulo, o governo estadual –então sob o comando de Washington Luís, do Partido Republicano Paulista– enviou àquele município um grupo de policiais que atuariam para reverter a situação.

Prejudicado, o Partido Democrático da cidade entrou na Justiça. O sorocabano Piza, opositor do PRP, tinha parentes em Capivari, além de amigos nascidos lá, e decidiu entrar na briga.

Sua verve implacável não era desconhecida quando "Roupa Suja" veio à tona. De origem aristocrata, culto, indomável, Piza, formado em direito pela Faculdade do Largo São Francisco, colaborava com diversos veículos.

Ao longo da carreira como escritor, ecoou "preconceitos contra homossexuais (...), negros e japoneses, algo bastante comum às pessoas brancas", anota Fausto, ressaltando, todavia, que "para além dos exageros", Piza criticava os males da política com "inegável destemor".

"Roupa Suja" foi o ponto culminante dessa vocação. Nele, o autor se revela hábil na arte da sátira, provocando não a gargalhada e sim o riso contido, íntimo, cerebral, que costuma acompanhar o uso inspirado da ironia.

A obra tritura a reputação dos vultos que aborda. O principal deles é justamente Washington Luís, embora sobrem referências debochadas a Júlio Prestes, líder do governo no Congresso de São Paulo, ridicularizado pela fala caipira e chamado de "donzela" —motivo pelo qual, insinua Piza, teria conquistado a simpatia do chefe do executivo paulista.

"Roupa Suja" ataca a gestão de Washington Luís pelo que o escritor considerava desperdício de dinheiro público: a construção de muitas rodovias. "A honestidade de um governo está (...) em gastar só e só aquilo que possa, sem sobrecarga inútil do povo, e (...) com preferência dos serviços mais urgentes", pontua.

Piza, porém, não fica nesse terreno –recorde que existiriam também "razões pessoais" por trás do seu "panegírico" às avessas.

O livro sugere que o futuro presidente da República recebera, em festas oficiais, "uma senhora elegante, bela, quase divina, e mais que tudo, alegre" –uma prostituta de luxo–, levada pelo deputado Roberto Moreira (que, indignado, por pouco não se bateu em duelo com o autor).

A personagem seria Nenê Romano, com quem Piza iniciara, cerca de dois anos antes, um caso tempestuoso. Já incomodada com o ciúme explosivo do autor, a "senhora alegre" resolveu encerrar a relação após o lançamento do "panfleto", supostamente atribuindo a ele o sumiço de quem a sustentava, pois ganhara o epíteto de "mulher do ‘Roupa Suja’".

Inconformado, Piza acabaria matando Nenê a tiros, dentro de um táxi, em 25 de outubro de 1923, suicidando-se na sequência. Tinha 32 anos; ela fazia 26 naquela data.

O voto livre desrespeitado, a falta de sensibilidade do governo para as reais necessidades da população, o assassinato de uma jovem pelo ex-amante –tudo isso soa, sim, de forma amargamente familiar. Eis uma história que não se pode mais admitir ver reeditada.

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